“ADSE serve para financiar o sector privado da saúde e pouco mais”

Alargar a ADSE a todos os portugueses, transformando-a num seguro complementar ao SNS, que possa cobrir áreas em que a oferta do sector público é insuficiente, como a saúde oral, é a proposta do administrador do Instituto Português de Oncologia de Lisboa.

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“Valia a pena encontrar uma forma de pôr pressão também sobre as empresas [laboratórios]” Pedro Trindade/nFACTOS

À frente do Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa desde 2012, Francisco Ramos quer mudar o modelo de organização interna da unidade e apostar em clínicas multidisciplinares. Cerca de 30 por cento dos doentes ainda esperam mais do que seria recomendável por uma cirurgia, admite o homem que foi por diversas vezes secretário de Estado da Saúde em governos socialistas.

Quatro anos depois de ter chegado ao IPO de Lisboa, quais são os planos a curto prazo? Sempre vai ser construído um novo edifício?
Penso que vamos deixar cair a ideia de um IPO novo em Oeiras ou Chelas. A solução passará por melhorarmos as instalações, aproveitando o terreno da Praça de Espanha. Se for possível concretizar esta ideia, o IPO fica com instalações decentes para os próximos 15 a 20 anos. É uma solução que, estou convencido, será financiável através de mecenato e de financiamento comunitário, que suportará mais de metade do custo. O projecto e o concurso serão lançados em 2017, vamos tentar que a obra arranque em 2018.

Mas isto não será uma espécie de remendo?
Não, é um edifício novo onde se concentrará tudo o que é ambulatório [actualmente disperso por vários edifícios] e que representa cerca de  90% de tudo o que as pessoas vão fazer ao IPO actualmente (consultas, hospital de dia, etc). Fazemos cerca de mil consultas por dia.

Há cada vez mais casos de cancro. O número de doentes tem aumentado muito?
Os novos doentes são cerca de seis mil por ano. Correspondem a 25% dos doentes de toda a região Sul. As consultas têm crescido – passaram de 127 mil, de Janeiro a Junho 2014, para 136 mil nos primeiros seis meses deste ano. No IPO, está tudo a aumentar excepto o lar e o hospital de dia de imunohemoterapia. A cirurgia aumentou 3% e os auto-transplantes também cresceram.

Em Março passado, soube-se que o serviço de atendimento programado estava caótico…
E esteve. São picos. O problema é arranjar camas de internamento, o que se liga com a questão dos cuidados paliativos. Por isso é que vamos celebrar um protocolo com a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa para camas de paliativos. Temos uma equipa de cuidados paliativos que dá apoio a todo o hospital e uma unidade de apoio domiciliário que só cobre o concelho de Lisboa por uma questão de limitação de recursos. Entretanto, na rede de cuidados continuados conseguimos colocar alguns doentes. Mas quando a referência é para cuidados paliativos passam-se meses e meses até a rede dar uma resposta.

O que acontece a estes doentes? Morrem enquanto aguardam?
Nalguns casos sim, noutros não. Por isso vamos contratar dez camas à Misericórdia de Lisboa, até que a rede [de cuidados paliativos] em Lisboa cresça significativamente. Basta ver que, no dia em que fomos à Santa Casa, o director do serviço de cirurgia do IPO mandou fazer um survey para saber quantos doentes internados teriam condições de ir para lá. Eram 17...  A ideia é libertar espaço do internamento para os doentes em fase aguda.

Os últimos dados indicam que o IPO está a responder nalguns casos com demasiada lentidão, há quem espere demasiado por uma cirurgia….
O IPO funciona razoavelmente bem, em termos genéricos, atende as pessoas rapidamente. São muitos raros os casos que ultrapassam uma semana para o acesso à primeira consulta. Agora, temos problemas de organização interna. Desde a primeira consulta até ao início do tratamento, o conjunto de actos de diagnóstico prolonga-se demasiado com demasiada frequência. Por vezes demora-se três meses para início do tratamento, quando provavelmente era possível fazê-lo apenas num mês. No acesso à cirurgia temos um problema que implica o aumento da capacidade cirúrgica. Há um concurso a decorrer para um bloco operatório com nove salas.

Então vai ser preciso esperar, enquanto isso não se concretiza?
Será muito difícil baixar (a espera). Conseguimos cumprir os tempos máximos de resposta em 70% dos casos [de cirurgia], mas queremos chegar a perto de 100%.

Haver listas de espera em cancro não é absolutamente inaceitável?
É uma questão psicológica, de ansiedade. É muito difícil dizer a alguém que tem um cancro e como vai ser tratado, e depois [deixá-la] a aguardar dois meses. Mas para isso precisamos de aumentar a capacidade de resposta. Em simultâneo com as obras do bloco operatório, vamos construir uma nova unidade de transplante de medula. Queremos organizar a prestação através de clínicas multidisciplinares, um modelo que organize melhor todo o percurso do doente.

Estas clínicas dentro do IPO são o local onde os diferentes especialistas se deslocam para ver os doentes?
Exactamente. Ter a clínica da mama, dos digestivos, do pulmão, da cabeça e pescoço. O cirurgião vai lá, o gastroenterologista vai lá, o neurologista deve ir lá e não marcar-se uma consulta em cada especialidade. Na prática, é inverter o paradigma, tentar que organização dos profissionais se adapte às necessidades das pessoas. Formei-me em administração hospitalar em 1981 e já nessa altura dizíamos que os hospitais deviam estar organizados em função das pessoas. Passaram 35 anos e ainda não o conseguimos fazer.

O IPO está no limite da sua capacidade?
Perante uma doença que continua a crescer, cuja prevalência aumenta e há casos mais complexos por pluripatologia, será inevitável que os IPO [não só o de Lisboa] estejam a trabalhar no limite das suas capacidades.

Têm falta de recursos humanos?
Depois de anos de queda (menos 50 trabalhadores por ano, sobretudo por aposentação), 2015 foi um ano de inversão. Aumentámos, e a expectativa para este ano aponta no mesmo sentido. Mas ainda há um peso burocrático na contratação.

O financiamento tem sido suficiente?
Este ano temos um orçamento de 103 milhões de euros, quando, no ano passado, foi de 107. Há uma redução em relação ao valor do contrato-programa de 2015. No ano passado conseguimos fazer uma negociação com a Administração Regional de Saúde demonstrando que a produção ultrapassava em muito o valor inicial e conseguimos um aumento, de 98 milhões de euros, para 107 milhões.  

Como é que vai ser possível tratar mais doentes com menos dinheiro?
É preciso ver que foi possível reduzir a despesa graças ao reequipamento em radioterapia nos últimos anos, passámos de um para seis aceleradores lineares. A despesa de aquisição a privados era de 12 milhões de euros e esperamos este ano gastar apenas 2 milhões. Mas estamos a gastar mais nos transportes de doentes. A despesa passou de três para cerca de cinco milhões de euros por ano. Aí a resposta é sermos nós a organizar o transporte, em vez de ser cada uma das pessoas a tratar disso. Estamos a  preparar uma central de transportes para entrar em funcionamento este ano.

Acabou de pedir à Entidade Reguladora da Saúde que se pronuncie sobre os casos de doentes que começam por tratar-se nos hospitais privados e acabam por ter que terminar o tratamento nos públicos, por falta de dinheiro. Os  privados deixam os doentes à sua sorte?
Acabam por deixar. Contam com a rede protectora que é o SNS, só que o facto de isso acontecer está a causar problemas a essa rede protectora. Por isso pedirmos à Entidade Reguladora que se pronuncie e promova uma discussão sobre como é que esses casos devem ser tratados.

Diz que tem uma proposta para um novo modelo para a ADSE? Qual é? 
A questão é que a discussão dos últimos dias tem-se centrado apenas no modelo institucional e ninguém parece interessado em discutir para que serve a ADSE. Na verdade, a ADSE serve hoje para financiar o sector privado da saúde e pouco mais. O anterior Governo fez duas coisas muito importantes: tornou-a financiável inteiramente pelos beneficiários em 2015 e mudou a tutela governamental, que passou das Finanças para Saúde. E isto é muito importante, porque a ADSE pode passar a ser vista como um instrumento de política pública de saúde. Mais: deveria ser encarada como um seguro complementar ao SNS.

Para quê?
O SNS tem áreas onde não dá resposta, como a saúde oral, óculos e próteses. Provavelmente, a  ADSE podia ter uma boa gama de cobertura nessas áreas. Por outro lado, o SNS tem uma excelente cobertura em saúde materna e em cuidados oncológicos. Se calhar a ADSE podia reduzir ou até eliminar a cobertura nestas áreas e assumir claramente o papel de seguro de saúde complementar ao SNS. Isto exigiria que fosse alargada a toda a população, de uma forma voluntária. O modelo de financiamento está definido – é a percentagem sobre salários ou pensões de reforma. O Estado pagaria por aqueles que não o podem fazer. O que se passa, hoje, é que a ADSE financia situações de redundância e de duplicação. Estou convencido de que era possível encontrar uma solução de neutralidade orçamental, entre o que o Estado ia pagar a mais e o que ia poupar, reduzindo redundâncias e gerindo melhor as convenções.  

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