À procura dos militares afogados no rio Corubal

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Jangada com os sobreviventes do desastre de Cheche, no rio Corubal DR

Até ali, tudo tinha decorrido sem incidentes. Para trás, tinham ficado os 30 quilómetros entre Madina de Boé e Cheche, e o rio começou a ser transposto na margem sul ao fim da tarde de 5 de Fevereiro de 1969. Passaram toda a noite naquilo. Só podia seguir uma viatura pesada de cada vez. Eram 28, mais 100 toneladas de munições e equipamentos, três auto-metralhadoras Daimler e à volta de 500 militares, conta-nos o então capitão José Aparício, comandante da companhia 1790 em Madina do Boé.

Ao início da manhã de 6 de Fevereiro, só restava na margem sul um grupo de homens: dois pelotões da companhia 2405, outros dois daquela que estava em retirada. "Eram entre 100 a 120 pessoas", diz José Aparício.

Toda a gente entrou na última jangada, que assim levava o dobro da sua lotação de segurança. Era feita por um estrado de madeira, assente em canoas e bidões de gasóleo vazios, puxada por um barco com motor fora de borda. José Aparício ia naquele grupo de homens. O alferes miliciano Rui Felício (que comandava um pelotão da companhia 2405) também.

De repente, a jangada adornou para um lado, atirando vários homens à água. Depois, balançou para o outro e cuspiu outros tanto. Ficou meio submersa, mas não foi ao fundo. José Aparício conseguiu manter-se na embarcação. Rui Felício caiu no rio.

"Estava a ir ao fundo. Percebi - se calhar muitos não perceberam - que tinha muito peso. Atirei a espingarda fora, que pesava cinco ou seis quilos, e a cartucheira à cintura, com outros cinco ou seis quilos. Descalcei as botas e nadei para a jangada." Ouviam-se gritos? "Não, não ouvi ninguém a pedir socorro, a gritar. Nada."

"Estou a arrepiar-me"

Paulo Lage Raposo, alferes miliciano da companhia 2405, atravessou o rio na viagem anterior. "Vimos que caíram uns para um lado e outros para o outro. Não houve gritos, nem esbracejares, nem coisa nenhuma. Carregados com as armas, as granadas, as botas, iam para o fundo como um prego." Muitos não sabiam nadar, o que agravou tudo. Mas naquele momento a dimensão do acidente passou despercebida.


"Só soube que tinha morrido gente - estou a arrepiar-me a contar isto - quando cheguei à margem e pedi a um furriel para formar o pelotão. Ao fim de dez minutos, fui ralhar com ele porque achava tempo demasiado para ainda faltar gente. Só percebi que se passava alguma coisa porque vi vários a chorar. Aí é que me apercebi que morreu gente. Do meu pelotão, foram 13", recorda Rui Felício.

"É uma coisa que marca para toda a vida. Tive coisas infelizes que já esqueci, mas esta não se esquece nunca. Lembro-me da data. Foi entre as nove as dez da manhã. Há pormenores que nunca mais saem da cabeça. Sei que estava um dia de sol."

Morreram cerca de 50 homens, quase todos da chamada metrópole. Do lado português do conflito, o desastre de Cheche, e não um confronto directo com o inimigo do PAIGC, foi o episódio que causou mais baixas durante a guerra colonial na Guiné-Bissau. Passados mais de 40 anos, a memória dos envolvidos retém números dos mortos diferentes. Uns falam em 45, outros 46, outros 47.

Este último número é referido, por exemplo, por José Aparício, tendo em conta os elementos que recolheu: "Morreram no desastre 25 militares da minha companhia e 22 da companhia de caçadores 2405, o que perfaz um total de 47 europeus. Morreram ainda na travessia mais cinco guineenses de um pelotão de milícias que fazia parte da guarnição de Madina do Boé. Felizmente, não morreu nenhum dos cerca de 100 elementos da população que ali viviam connosco e que foram evacuados para a então Nova Lamego, hoje Gabú. Fizeram a travessia em viagens anteriores."

Na época, a imprensa internacional fez-se eco da tragédia. Três dias depois (9 de Fevereiro), o jornal The New York Times escrevia numa breve notícia: "As autoridades militares [da Guiné portuguesa] relataram que se afogaram 47 soldados quando a sua jangada se afundou na travessia do rio Corubal. O comunicado não dizia quando ocorreu o desastre."

Duas semanas depois do naufrágio, foi organizada uma operação de recolha dos corpos por fuzileiros e mergulhadores. Muitos desapareceram para sempre. Na série de documentários A Guerra, de Joaquim Furtado, podem ver-se imagens aéreas de alguns corpos a boiar, recolhidas pelo piloto da Força Aérea José Nico. "Os [corpos] recuperados foram sepultados nas margens do rio, com as honras militares próprias", relata Joaquim Furtado.

O desastre de Cheche é hoje motivo de inúmeros relatos na Internet, nomeadamente no blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Os antigos combatentes encontraram essa forma de fazer o luto colectivo da tragédia que viveram. Outros emocionam-se tanto que recusam falar disso.

Ossos detectados no subsolo

Numa das redes sociais na Net, Rui Felício falou de um companheiro morto em Cheche, e foi contactado pela sobrinha desse militar. "Perguntou-me se eu sabia mais alguma coisa. E disse que a família gostava de ter os restos mortais dele."


É para localizar, identificar e exumar os ossos de militares portugueses espalhados por vários países que a Liga dos Combatentes tem um plano em curso desde o ano passado. Começou pela Guiné, em Novembro último, fez ali a quarta missão. Entre os locais visitados, a missão foi a Cheche, chefiada pelo major-general Fernando Aguda, vice-presidente da Liga.

Antigos combatentes guineenses, ao serviço das forças armadas portuguesas, guiaram Fernando Aguda a uma vala comum, nas margens do Corubal, onde podem ter sido sepultados corpos resgatados ao rio em Fevereiro de 1969. "Souberam indicar o local onde foram enterrados oito militares."

Uma vez aí, fez-se uma prospecção geofísica do subsolo, para se tentar "ver" se alguém está ali enterrado. E, de facto, o geofísico Hélder Tareco, da Universidade de Aveiro (que integra a equipa científica no terreno, coordenada pela antropóloga forense Eugénia Cunha), encontrou algo com os seus aparelhos. "A uma profundidade X e perímetro Y, detectou-se qualquer coisa volumosa, que serão possivelmente as ossadas de oito militares portugueses", diz Fernando Aguda.

"O Hélder detectou ossos", explica Eugénia Cunha, da Universidade de Coimbra e colaboradora do Instituto Nacional de Medicina Legal. "As propriedades do solo são diferentes consoante o tipo de materiais. Ele pode dizer que materiais são. Neste caso, conseguiu."

O local não foi aberto, para ver de quem são os ossos.Esse trabalho ficará para a próxima missão da Liga à Guiné, em 2010.

Tragédia de Cheche

Que a jangada naufragada no rio Corubal tinha excesso de peso não suscita grandes dúvidas. Mas o que desencadeou a queda à água de soldados é alvo de versões desencontradas. Os alferes milicianos Rui Felício e Paulo Lage Raposo (o primeiro ia na jangada, o segundo fez a travessia na viagem anterior) dizem que foi o peso a mais, tendo ficado desequilibrada. Com capacidade para dois pelotões (uns 60 homens), fazia a travessia com os últimos quatro pelotões, de duas companhias. "Às vezes facilitamos demais", diz Paulo Raposo. "Para mim, a jangada virou-se porque tinha excesso de peso, embora haja relatos diferentes", diz Rui Felício.


Um desses relatos é o do capitão José Aparício (comandante da companhia 1790, em retirada do quartel de Madina do Boé), também na jangada. Diz que se ouviram tiros de morteiros e, em reacção, o barco a motor que puxava a jangada acelerou demais e fez cair homens. Não houve tiros de morteiro, dizem Raposo e Felício. "Havia uma paz absoluta naquele rio", lembra Felício. "Estávamos habituados a ouvir tiros. Não era com uns tiros que nos assustávamos", junta Raposo. No documentário A Guerra, de Joaquim Furtado, dá-se voz às diversas versões e suas nuances. "Os morteiros existiram. Não tenho dúvidas", diz José Aparício a Furtado. "Há pessoas que disparam armas e sabe-se quem foi. Esta gente foi ouvida." Estava previsto dispararem-se morteiros para a margem sul do rio, quando todos tivessem deixado essa margem, no fim da operação.

É mostrado um filme feito pelo piloto José Nico, que filmava a penúltima travessia mas recebeu indicações para ir filmar os morteiros. Vêem-se os disparos das armas: "É durante esta filmagem que recebe a notícia do naufrágio da última jangada", ouve-se Furtado a dizer. "Imediatamente a seguir, José Nico filma estas imagens que mostram a jangada acidentada no meio do rio, enquanto alguns militares tentam as primeiras operações de socorro." Este acidente deixou a operação Mabecos Bravios (cães selvagens) tristemente célebre.

O então brigadeiro António de Spínola, governador e comandante-chefe da Guiné, decidiu retirar as tropas do Leste do país, pouco povoado e com pouco a defender. Naquela operação deixava-se Madina do Boé, sempre sob ataque.

Missão da Liga dos Combatentes na Guiné

A Liga dos Combatentes acaba de proceder ao levantamento dos restos mortais de dez militares portugueses sepultados em vários locais do Sul da Guiné-Bissau, principalmente em cemitérios. Na sua quarta missão neste país - com o objectivo de localizar, identificar e exumar os ossos de militares espalhados pelo território guineense, para os reunir no cemitério de Bissau -, a equipa chefiada pelo major-general Fernando Aguda esteve em sítios como Bolama, Bedanda, Cacine, Catió, Fulacunda, Quebo e ilha das Galinhas. Excepto neste último, a equipa científica da antropóloga Eugénia Cunha, que integrou a missão, esteve a fazer o levantamento dos restos mortais de militares. Mas foi no Leste, nas margens do rio Corubal, em Cheche, onde ocorreu um dos desastres mais marcantes da guerra colonial portuguesa da Guiné, que esta missão localizou o próximo local de intervenção: a vala comum onde se supõe estarem os ossos de oito militares. Nas missões anteriores, a Guidage, Farim e Gabú, foram levantados 55 corpos. Alguns, de militares recrutados localmente, ficaram nos cemitérios locais, mas a maioria foi para Bissau e, destes, oito vieram para Portugal por vontade das famílias.


Texto publicado na edição impressa do PÚBLICO de 6 de Dezembro de 2009
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