"A diversidade é usada para vender a ideia de cidade aberta, cosmopolita"

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A socióloga Maria Margarida Marques Rui Gaudêncio

A socióloga Maria Margarida Marques, professora na Universidade Nova de Lisboa, onde é também coordenadora do curso de mestrado em Migrações, organizou a colectânea de investigações que dá origem ao livro Lisboa Multicultural, editado no ano passado pela Fim de Século. Ali se focam vários aspectos ligados à imigração e à diversidade religiosa, étnica e racial em Lisboa. Falámos com a socióloga num dos bairros mais turísticos de Lisboa, Alfama. Na turistificação das zonas mais diversas da cidade, onde muitas vezes os próprios lisboetas são também turistas, há o risco de se cristalizarem estereótipos, afirma. A pergunta fundamental, sempre, é: “o que é que os imigrantes ganham com isso?”  

A diversidade cultural em Lisboa é um recurso que está a ser bem usado turisticamente?
Lisboa está a tentar acompanhar as orientações europeias relativamente a isso - aproveitar a imigração para vender uma imagem de cosmopolitismo e promover a coesão social. Um pouco por toda a Europa há carnavais, paradas, festas ‘celebrando’ a diversidade. Há um conjunto de iniciativas, frequentemente utilizando essa referência ao cosmopolitismo, que são reflexo da imigração mas também de outras formas de expressão do pluralismo, para promover as cidades, o seu lado aberto, tolerante, democrático. A diversidade é a expressão usada hoje em dia para vender uma ideia de cidade que é moderna, aberta, cosmopolita. 

O Carnaval de Colónia, por exemplo, é considerado uma referência mundial. Hoje essas festas são instituições que marcam o ciclo de vida das cidades, têm um impacto imediato, que não é apenas económico, em termos de promoção externa da cidade, mas também um impacto a mais longo prazo, em termos de políticas de integração. Aqui em Lisboa há o festival Todos, que segue a mesma inspiração, e há várias iniciativas na Mouraria. 

Não mobilizam cá tanta gente como os eventos que está a referir…
Porque não têm uma projecção além fronteiras e porque no seu interior Lisboa ainda é uma cidade muito tradicional e segmentada. Ou seja, se for a um desses eventos de ‘promoção da diversidade’ vai ver pessoas ligadas a associações de imigrantes, a várias ONG’s ligadas às questões migratórias, pessoas que estão associadas a estilos de vida alternativos, mas não encontra o lisboeta ‘comum’. Sempre que vou a uma festa a um bairro de imigrantes ou a uma festa com africanos sou das poucas pessoas brancas presentes. Os portugueses brancos não vão a essas iniciativas - ainda continuam a vê-las como  ‘as coisas deles’, dos africanos, dos imigrantes.

Não há uma zona específica do centro de Lisboa onde esse lado africano seja mais expressivo, porquê? 
Havia a zona das ruas do Poço dos Negros, de São Bento e a ligação ao Conde Barão, por exemplo,  onde existia uma população cabo-verdiana e uma série de pequenos comércios que se perdeu. A própria renovação de Lisboa está a empurrar as pessoas que viviam nessas zonas para fora. E com a saída do B.leza [discoteca e bar de música africana que ficava num antigo palacete na zona de Conde Barão] para a beira rio [no Cais do Sodré] perdeu-se também esse eixo, essa ligação que havia a São Bento. 

É possível que esta renovação das zonas antigas, que eram as mais procuradas pelos imigrantes porque as mais baratas, tenha resultado num empurrar dessa oferta para fora. Essa mudança que se tem vindo a consolidar nesses pequenos bairros e trajectos, agora que Lisboa está a ser modernizada, está a varrer essas pessoas e as suas actividades – em contraste com o que se está a passar na Mouraria. 

Há  risco de estar a varrer essa diversidade na turistificação de Lisboa?
Não diria isso. O que diria é que é necessário ver com cuidado em que é que se está a reflectir esta modernização naquilo que foram trajectos, pólos de animação urbana que existiam e estão a perder os seus espaços, actividades que estão a ser empurradas e ocupadas por outro tipo de actividades. Não sei se, por exemplo, as pessoas que iam ao antigo B.leza continuam a ir a este novo espaço - eu lembro-me de que ao antigo iam pessoas de todo o tipo, que vinham de todo o lado. 

Mas voltando à pergunta: como é que Lisboa está a aproveitar o seu lado multicultural?
Na zona da Mouraria e do Intendente há um investimento fortíssimo da câmara e os imigrantes foram um dos ‘instrumentos’ para a renovação daquela zona. Para mim é evidente que se não fosse a presença dos imigrantes, este projecto do presidente da câmara da altura, actual primeiro-ministro, António Costa, nunca teria conseguido chegar a parte nenhuma. Foi porque havia imigrantes e possibilidade de apostar naqueles imigrantes e nas suas iniciativas como um chamariz para atrair pessoas àquela parte da cidade que aquilo funcionou. Está completamente mudado: vai-se hoje ao Intendente e vê-se a mudança. Não quer dizer que não continue a haver problemas. Mas o que chama ali pessoas - e em termos de turismo de forma muito evidente - é a diversidade que ali encontram.

Falou de instrumento. E os imigrantes no meio disso?
Essa é a pergunta fundamental: o que é que os imigrantes ganharam com isso? Na Mouraria-Intendente, penso que ganharam um espaço renovado, um espaço digno - já não é um espaço ao abandono, onde estavam paredes meias com actividades perigosas (onde há droga existe perigo). Ganharam um espaço comercial, segurança, dignidade. Que há um turismo interessado em ir a essas zonas e explorar o que essas zonas têm para oferecer, é muito evidente; ganhou pois a economia da cidade. Ganhou também a câmara porque conseguiu rentabilizar os investimentos que fez e trazer para o pulsar normal da cidade uma zona que estava guetizada. Não tenho dúvidas de que foi uma aposta ganha, possível com esta política urbana da diversidade.

Qual o risco de se tornar esse espaço numa montra, até porque estamos a falar de um par de ruas?
Não é só uma montra. Mas pode, de facto, contribuir para fixar estereótipos - as pessoas vão para ver e confirmar os estereótipos. E há sobretudo o risco de, dentro destes estereótipos, não caber uma reflexão sobre o lado obscuro que pode existir neste tipo de situações. Como, por exemplo, os salários baixos, as diferenças de género (homem e mulher), as dificuldades de encontrar um espaço para as crianças poderem acompanhar a escola de forma a terem bons resultados... É importante ter isto presente. Muitos destes negócios vingam porque há um sacrifício enorme da parte das pessoas que estão a trabalhar: trabalham o pai, a mãe, os filhos - não oito horas por dia mas o tempo que é necessário. Muitas vezes as pessoas auto-exploraram-se na expectativa de criar um espaço de mercado ou até de conseguir entrar no mercado de trabalho. 

Também nós, mesmo os lisboetas, acabamos muitas vezes por nos manter no lugar de turista: queremos manter o que lá está? 
Sem dúvida. Esta ideia da diversidade  - ‘todos diferentes, todos iguais’ - pode ter este lado negativo que é uma certa atitude paternalista (ou até de xenofobia ou racismo em certos casos) relativamente a uma expressão de diversidade que pode ser apenas de exploração. Porque há coisas que não aceitamos entre os que nos são semelhantes, mas que aceitamos como se fossem naturais ou até atractivas quando são os ‘outros’ que as praticam...  

Cristaliza-se o estereótipo.
Corre-se o risco de a população maioritária naturalizar determinadas imagens, como também de os próprios interiorizarem a ideia de que ser daquela nacionalidade, pertencer a determinada categoria, é viver naquelas condições - quando não é. Por isso é preciso ter cuidado e ter sempre presente a pergunta: o que é que os imigrantes podem ganhar com isto? 

É fantástico ver os turistas nacionais e os estrangeiros que visitam Portugal irem a estes locais, a estes eventos, entrarem e adorarem - a imagem que levam é de que Lisboa é uma cidade cosmopolita, etc. Mas será que os imigrantes ganham também e todos por igual com isso?

E nós, lisboetas, continuamos com a atitude de turistas ou temos-nos misturado mais?
De uma forma geral, os lisboetas brancos continuam a ter uma atitude muito distante relativamente a estas iniciativas. Vêem-nas como ‘coisas deles’: vão ao restaurante indiano, chinês, mas não os vejo a participarem em iniciativas urbanas. Não me parece que haja uma adesão àquilo que está a ser feito como sendo ‘nosso’ - continua a haver uma forma muito segmentada de olhar para as coisas. Como referi, acho que é uma sociedade ainda muito tradicional, aparentemente a cosmopolitizar-se. Mas, nas estruturas profundas, uma sociedade ainda muito segmentada.

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