Há dezenas de pistas de aterragem a funcionar sem controlo em todo o país
PJ teme que algumas das pistas de aterragem existentes no país estejam a ser utilizadas para actividades ilícitas. O tráfico de droga é uma das possibilidades, como comprovou a apreensão de 277 quilos de haxixe a bordo de um avião ligeiro que aterrou em Beja, num aeródromo não-certificado, há pouco mais de um mês. Por Mariana Oliveira
Há dezenas de pistas de aterragem a funcionar em Portugal sem qualquer controlo. Uma grande parte dos aeródromos existentes não está certificada. Muitos estão mesmo ao abandono. Algumas das pistas apresentam boas condições de utilização, mas a falta de vedação e a ausência de guardas são uma tónica dominante que impossibilita qualquer controlo. O Instituto Nacional de Aviação Civil (INAC), a autoridade aeronáutica nacional, não possui sequer um levantamento das estruturas daquele tipo existentes no país. Contabiliza apenas os 33 aeródromos certificados, os dois aprovados e os 12 com processos pendentes (ver infografia na página ao lado). No entanto, todos garantem que há muitos mais. Ninguém duvida igualmente das falhas graves na fiscalização. A Polícia Judiciária (PJ) está preocupada com o cenário e teme que algumas das estruturas estejam a ser utilizadas para actividades ilícitas.
O Aeródromo de Beja, onde há menos de dois meses a PJ apreendeu 277 quilos de haxixe a bordo de um avião monomotor que vinha de Marrocos, é um exemplo paradigmático: o seu director, Reinaldo Sousa, sabe que o aeródromo não está certificado e que apenas pode ser utilizado por aeronaves que fazem trabalho agrícola, ou seja, sulfatações e fumigações das searas. Não esconde, no entanto, que isso não acontece: "É usual outros aviões utilizarem esta pista. No dia em que a PJ apreendeu a droga estava ao lado daquela aeronave uma outra". A estrutura não está vedada nem possuiu nenhum funcionário em permanência. "Registos? Só quando me pagarem", argumenta, justificando o exercício do cargo "na base da carolice".
O INAC, que deve fiscalizar e aplicar contra-ordenações ao tráfego ilegal, diz "desconhecer em absoluto" o uso rotinado da pista de Beja. "O Aeródromo de Beja está encerrado. Para nós, é como se não existisse. Ora, se não existe, também não pode ter director", alega Joaquim Carvalho, director da facilitação e segurança do instituto. Reinaldo Sousa garante, no entanto, que não é virtual e que até recebe correspondência mensal do INAC.
A utilização da estrutura por aeronaves fora das situações autorizadas não é, no entanto, segredo. Muitos dos aviões comunicam as suas movimentações à base aérea militar que fica a dois quilómetros. Na Internet, um "site" especializado (www.pelicano.com.pt) informa que o aeródromo está aberto ao tráfego de aeronaves ligeiras, referindo que os primeiros 200 metros da pista estão em mau estado e que os restantes 800 estão "excelentes". No "site" apresentam-se quase 130 aeródromos.
Beja não é um caso isolado no contexto nacional. "Só no distrito de Beja e no de Évora há mais de 50 pistas iguais a esta. Muitas estão abandonadas, podendo os aviões levantar e aterrar quando querem sem qualquer controlo", contabiliza Reinaldo Sousa.
Carlos Costa é vice-director do Aeródromo de Viseu e não tem dúvidas de que os criminosos têm terreno fertil nesta área: "Se quisesse dedicar-me a actividades ilícitas, há centenas de pistas de ultraleves pelo país que não têm guardas". O presidente do Aeroclube de Viseu, José Martinho, admite que há muitas estruturas sem vigilância. "Há dezenas de pistas agrícolas que ninguém controla", refere.
O panorama, dizem todos, não é muito diferente do que se regista no estrangeiro. Espanha e França são exemplos repetidos. Neste países a utilização de aviões para traficar droga também é conhecida. Recentemente, o "El País" noticiou a morte de um francês, residente em Marrocos, que se despenhou em Espanha. Nos destroços da avioneta foram encontrados 110 quilos de haxixe. A mesma notícia referia que uma semana antes a Guarda Civil de Cádis tinha impedido a descolagem de uma aeronave de fumigação com 450 quilos de haxixe a bordo. A PJ considera, contudo, que o caso português é mais grave do que os restantes devido à falta de controlo.
Algumas utilizações irregulares das pistas são do conhecimento público. Os aviões ligeiros de combate a incêndios florestais aterram em vários aeródromos do país. Apesar de não constar da lista de aeródromos certificados que o INAC entregou ao PÚBLICO, a pista de Ferreira do Zêzere recebe estas aeronave. O director do Aeródromo de Castelo Branco, Manuel Rolo, admite que há aviões ligeiros estacionados na sua pista, embora ela só esteja certificada para ultraleves. "O INAC tem conhecimento disto porque há uns tempos tivemos que lhes enviar os dados dos aviões que estão aqui estacionados", sustenta, ao adiantar que há um processo pendente para a nova certificação.
Propostas da PJ
têm sido ignoradas
A PJ tem conhecimento do cenário e está preocupada. "Temos feito propostas ao longo dos anos para que haja um melhor controlo e fiscalização do tráfego nos aeródromos, mas essas medidas não têm sido concretizadas", afirma José Braz, responsável máximo da Direcção Central de Investigação do Tráfico de Estupefacientes (DCITE). As recomendações vão no sentido de criar regras mínimas de segurança nos aeródromos, exigindo nomeadamente a sua vedação e vigilância, o registo das chegadas e partidas, a identificação das aeronaves e o conhecimento prévio dos planos de voo. "Aquelas que não cumprirem os requisitos devem ser desactivadas, impedindo-se fisicamente a sua utilização", defende, temendo que as falhas de controlo sejam um incentivo aos criminosos para utilizarem a via aérea para desenvolver actividades ilícitas. "Quanto mais se apostar na fiscalização e controlo deste tipo de tráfego aéreo, mais condições temos para prevenir e investigar formas de criminalidade grave que utilizam aquele modus operandi, acredita o director adjunto da PJ.
O INAC rejeita que alguma vez tenha bloqueado medidas para melhorar a fiscalização e insiste que são as forças policiais quem deve verificar no terreno se as aeronaves respeitam as limitações impostas pelo instituto. "A GNR e a PSP é que nos devem comunicar este tipo de infracção. A partir do momento em que temos conhecimento formal da situação, levantamos um inquérito", sustenta Joaquim Carvalho.
A GNR, responsável pela segurança de mais de 90 por cento dos aeródromos do país, e a PSP não rejeitam a responsabilidade. "Os aeródromos são pontos críticos e nós devemos garantir a segurança destes pontos, nomeadamente toda a circulação que aí se regista", precisa José Sousa, um comandante da GNR ligado a esta área. O responsável assegura que foram emitidas recomendações nesse sentido, mas admite que não sabe se isso é concretizado no terreno. Mesmo assim, defende: "O próprio INAC também deve fiscalizar".
As directivas nem sempre chegam à base. Questionado pelo PÚBLICO sobre por que não interveio no controlo do tráfego de Beja, uma fonte oficial do comando local alegou que o assunto não lhe dizia respeito. "Só fazemos o policiamento normal do local. Não temos nada a ver com o tráfego aéreo. Essa fiscalização é feita pela Força Aérea", argumentou a mesma fonte.
A PSP também reconhece as suas atribuições, mas lembra que precisa do apoio da autoridade aeronáutica. "Para sabermos se uma pista está certificada para um tipo específico de operação, temos que ser informados pelo INAC. Afinal, somos uma ferramenta deles", afirma Nuno Teixeira, da PSP. E concluiu: "É preciso implementar mecanismos de fiscalização mais rígidos".