Literacia mediática
Ler notícias? Só se aparecerem no feed. São “desinteressantes e repetitivas”
Lêem o que aparece nas redes sociais, não gostam dos temas nem da linguagem. O projecto PSuperior quer contrariar isso, com a oferta de assinaturas digitais a estudantes universitários.
Ana Sofia Mendes e os amigos fizeram uma experiência: ver quantos deles tinham a aplicação de um órgão de comunicação social instalada no telemóvel. Resultado? “Quase ninguém tinha.” O cenário não surpreendeu a jovem de 21 anos, estudante da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, que diz ter uma perspectiva “crua” no que toca ao consumo de notícias por jovens: “Não lêem, não vêem jornais e nem sequer vêem televisão. Ficam só pelas letras garrafais que lhes vão aparecendo.”
Precisamente por saber que, por vezes, são só “as letras gordas” que contam, o PÚBLICO associou-se a nove empresas para oferecer assinaturas digitais a alunos finalistas ou de mestrado integrado de determinados cursos de universidades públicas e privadas de todo o país, ao abrigo do projecto PSuperior, que é lançado esta quarta-feira, 20 de Novembro. A ideia é alertar os jovens para a desinformação e para as fake news, num momento em que o que “lhes vai aparecendo” são as notícias que caem no feed das redes sociais que utilizam — e que nem sempre são de fonte fidedigna. E incentivar hábitos de leitura de jornais junto dos jovens universitários.
Para Inês Amaral, professora da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, a principal alteração no que toca ao consumo de notícias feito por jovens é na questão do acesso: “Até diria que os jovens consomem mais informação do que consumiam antes, mas o acesso passou a ser feito através do digital, das redes sociais. Agora não vem da procura por informação, mas de um acesso espontâneo”, explica a investigadora, que se tem dedicado a estudar a literacia mediática em Portugal, em entrevista telefónica ao P3.
Sara Pereira, investigadora do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho, corrobora: “Há uma tendência grande para, hoje em dia, o contacto que os jovens têm com as notícias ser feito através das redes sociais. É aí que encontram a informação.” E se, por um lado, as redes sociais podem fazer notícias saltar à vista de quem não as procura, por outro são também terreno fértil para a disseminação de fake news. Ou para a criação de “bolhas” intelectuais: o algoritmo calcula os interesses de cada um de nós, oferecendo constantemente informações coincidentes com os nossos tópicos de eleição, excluindo todos os conteúdos que sabe que, à partida, não nos vão agradar. O que é, para Inês Amaral, “redutor”.
Depois do primeiro contacto com as notícias, feito através das redes sociais, “há aqueles que querem ler na íntegra e os que se ficam apenas pelo título”: as tais “letras garrafais que vão aparecendo” que Ana Sofia acredita ser o único contacto que os jovens têm com as notícias. A estudante de Direito, também presidente da Associação de Estudantes do mesmo curso, diz que “já nem fala” em comprar um jornal: “As pessoas nem têm interesse em ver notícias online.”
As notícias são “repetitivas e desinteressantes”
Mas, afinal, porque é que os jovens não lêem notícias? “Estão altamente desinteressados pelas hard news e pelas questões da actualidade”, atira Inês Amaral. Salvo excepções, como o tema das alterações climáticas, os assuntos que são tratados pelos media tradicionais “são considerados repetitivos e desinteressantes” para o público mais jovem.
Ana Sofia acredita que também contam questões como o hábito e o incentivo à leitura e a procura de informação: “Eu sempre fui instruída a ler notícias. E se formos habituados a isso desde os 14 ou 15 anos, aos 19 e 20 vamos continuar a fazê-lo.” Uma realidade que também é defendida por Sara Pereira, que relembra que a leitura de notícias depende dos “hábitos de consumo” de cada um.
Ao desinteresse acresce a incapacidade de compreender certos tópicos: “Há assuntos que até interessam aos jovens e que lhes podem ser mais próximos — como as questões de economia ou política —, mas que eles dizem não entender. É preciso uma adaptação da linguagem.” Mais ainda, o “consumo imediato”, típico do que é feito nas redes sociais, leva a que os jovens descartem rapidamente as notícias: “Ou está no título e no lead, ou não está.”
A solução para reverter o panorama pode passar “pela ideia de dar voz a assuntos cívicos, que parecem ser os que despertam mais atenção”, defende Inês. A professora refere que “tópicos sensacionalistas, como crime, violência, catástrofes e conflitos, são normalmente referidos como de interesse”. Mas salvaguarda a ideia de que “a informação não pode existir numa lógica de on demand” e que “o jornalismo precisa de cobrir aquilo que é a actualidade.”
Sara Pereira vai mais além: “Acredito que tem de haver mais visibilidade e representação dos jovens, mas se não é na fase de jovens adultos que se interessam pela actualidade, quando é que estamos a formar adultos?” A investigadora acredita também que não é necessário “transformar uma linguagem que já aceitável desde o ensino secundário.”
Mas o que diz uma jovem sobre o assunto? “Pode, de facto, haver um desinteresse pelas temáticas abordadas pelos media, mas o que acho que acontece é que a própria sociedade não dá a devida importância à comunicação social”, atira Ana Sofia.
O que está na Internet é “certamente verdade”
“A questão da literacia mediática é uma urgência há muito tempo, mas, com os consumos em grande velocidade, assumiu uma relevância maior”, refere Inês. “Sobretudo quando temos sites como os Bombeiros 24 a venderem coisas em que as pessoas acreditam e não questionam”, diz a investigadora de Coimbra, referindo-se a uma das páginas portuguesas mais vezes associadas a fake news.
Mas se seria de esperar que, como nativos digitais, os jovens estivessem mais sensíveis às notícias falsas, a verdade é que “são altamente vulneráveis nesse campo”. Até porque o facto de terem “nascido com o digital” faz com que haja uma enorme “credibilidade pelos pares, mesmo que não os conheçam pessoalmente”: “Se alguém partilha algum conteúdo através de uma conta no Twitter que eles já seguem há muito tempo e a quem atribuem credibilidade, não questionam”, explica Inês.
Ana Sofia resume numa frase: “Nós sempre procuramos tudo na Internet.” Por isso, tudo o que lá está é “certamente verdade”. Ainda assim, defende Sara Pereira, “os jovens têm noção de que quando querem informação credível e fidedigna, vão procurar a sítios feitos por profissionais”. “Há um reconhecimento grande do trabalho do jornalismo e de jornalistas.”
O que não quer dizer que seja suficiente para pagar uma assinatura de um jornal: “Ler uma notícia não desperta os mesmos sentimentos que ver uma série”, explica Ana Sofia. Por isso, diz, na hora de escolher, quem ganha a maior parte das vezes é a Netflix.