Entrevista
“Os ingredientes já estão no sistema de ensino. A computação é a matemática em movimento”
O presidente da Ensico, Luís Neves, defende o ensino das ciências da computação desde tenra idade e afirma que é este o caminho para que os jovens sejam mais livres e felizes quando depois exercerem a sua atividade profissional.
Para Luís Neves, presidente da Ensico, Associação para o Ensino da Computação, "é urgente combater esta linha perigosa de acesso à tecnologia de forma desenfreada sem a conhecer”.
Como surgiu a sua vontade de criar a Ensico?
Tenho, obrigatoriamente, de voltar atrás vinte e tal anos porque foi nessa altura que tudo começou. A curiosidade pela computação surgiu quando eu tinha 15 anos, no período da popularização da informática. Estava no 9.º ano quando começaram a aparecer os primeiros computadores, nos anos 80. Na transição para o secundário, abriu o curso de Informática, na Escola Secundária Oliveira Martins, no Porto. Tive a sorte de ir para lá estudar e tive excelentes professores, todos muito diferentes e de diferentes áreas de formação, desde a matemática ao sector empresarial.
Ingressei depois na Universidade do Minho (UM) para frequentar o novo curso de Matemática e Ciências da Computação, criado pelo professor Esgalhado Valença. Durante o curso conheci também o professor José Nuno Oliveira, um dos fundadores da Ensico. A disciplina dele marcou-me profundamente, porque abordava a programação numa vertente absolutamente científica. Logo nessa altura, começámos a discutir o que era essa disciplina da Computação e a forma como era dada na UM. Percebemos que devia passar as barreiras do ensino superior para se tornar mais transversal a todos os alunos, de todos os ciclos de ensino.
Quando começou o projeto a “ganhar forma”?
Foi há quatro anos, em conversas com outras pessoas ligadas à área, que decidimos avançar com a Ensico. Sentíamos todos que a aprendizagem devia começar pela base científica de ciência da computação e nós estávamos na cauda da Europa. Tínhamos experiências incipientes na área, como a que foi feita com o computador Magalhães. Vemos, nesta era da informação, uma era marcadamente científica, uma tendência perigosa e preocupante. Está toda a gente a aderir a um consumo desenfreado de tecnologia sem saber de que forma essa tecnologia funciona.
Procuraram saber o que já estava a ser implementado no estrangeiro…
Inspirámo-nos no movimento inglês, que se alargou ao resto do mundo. Em 2018, no início da criação da Ensico, fui a Inglaterra reunir com o mentor do movimento de ciência da computação, o professor Simon Peyton Jones. Ele fez, durante oito anos, quase uma ‘pregação do evangelho’ para pedir o ensino da Computação e para que esta passasse a ser uma disciplina que deve acompanhar o ensino da Matemática e da língua materna. A partir dessa troca de ideias e reuniões que tivemos com ele, começámos a pensar no modelo, numa associação e numa liderança. Foi nessa altura que dei o passo. Era o momento certo para dar o passo e propus-me liderá-lo. Para mim, tornou-se uma missão quase patriótica levar a ciência da computação às escolas do país.
Porque é tão importante começar o quanto antes a introduzir a disciplina nas escolas?
É urgente combater esta linha perigosa de acesso à tecnologia de forma desenfreada sem a conhecer, de todo. Os computadores são poderosíssimos, tudo passa pelas máquinas… a saúde, na indústria, etc. Estamos a entregar o poder a quem domina a área. A humanidade não pode ser isto. A tecnologia e a ciência da computação devem funcionar como elemento pivot para reforçar as aprendizagens essenciais, não podemos facilitar o que é a aprendizagem das nossas crianças, nem brincar com a educação. Temos de respeitar quem está a ensinar e preparar o presente e o nosso futuro.
Quais são as mais-valias da ciência da computação na aprendizagem da Matemática ou do Português?
O Português e Matemática são o nosso reforço. Falar corretamente uma língua materna é sinónimo de rigor. Está associado a máquinas: rigor é máquina. Como tal, o aluno que passa por estas duas disciplinas deve entendê-las, com dados práticos, dinâmicos, animados. Fazem-se perguntas às quais não estão habituados a responder: gostam de filmes de animação? O que é um filme? Como tudo é transformado? É essa a questão. Daqui parte-se, por exemplo, para as noções de conjunto e de sequência. E o Português tem de ser correto, se não a máquina não entende a mensagem…
No processo de ensino e aprendizagem devemos trabalhar a mente para encarar qualquer tipo de situação. Mais importante é que seja feito de forma a preservar as características de cada um, desde o mais criativo ao mais virado para as ciências ou para as letras. Devemos ser capazes de dotar todas as crianças de um pensamento estruturado, mostrando a forma como devem encarar os problemas e resolvê-los, mas ao mesmo tempo explicando que vão ter, como nunca, uma ferramenta que, se bem trabalhada, vai permitir explorar as suas paixões. É misturar a capacidade individual de cada aluno com o que mais gosta de fazer e elevar o seu potencial.
Podemos fazer um paralelismo entre a capacidade de comunicar com as máquinas e a aprendizagem das mais variadas disciplinas?
Quando estruturamos a mente para usar o poder das máquinas, a nossa criatividade está a ser explorada na sua plenitude. Isto acontece porque estamos na era em que estamos. É importante fazê-lo ao mesmo tempo da aprendizagem da língua materna, com a capacidade de comunicar com a máquina. A matemática é também ela uma linguagem. Se eu quero brincar com o outro ou partilhar o conhecimento, a forma de o fazer é com uma linguagem própria, que é a linguagem matemática. É, em certa medida, a primeira linguagem de programação. Os ingredientes já estão no sistema de ensino. A computação é a matemática em movimento. O que acrescentamos agora é uma máquina e temos de ensinar os mais pequenos desde tenra idade.
Qual é o papel dos professores? E dos pais?
Os professores têm de perceber o que é a realidade do mundo de quem estão a ensinar. Os miúdos já nascem a saber, mas é a saber consumir tecnologia. Os professores têm de perceber esta realidade. Já os pais têm de saber educar os filhos e contrariar esta tendência que tem vindo a ser a realidade: no que tem a ver com tecnologia, o consumo de tecnologia sem a entender é perigoso. O conhecimento é o pilar da humanidade.
A Ensico quer traçar uma ‘nova era’ no ensino?
Se o ensino da ciência da computação começar em tenra idade, os jovens serão mais livres e felizes quando exercerem a sua atividade. A liberdade está muito associada a conhecimento. Se conhecerem bem esta muleta da ciência da computação, terão mais liberdade. Dou-lhe um exemplo muito concreto. A idade das escolhas é um problema. As crianças escolhem muito por influência dos pais. Quanto mais conhecimento tiverem as crianças e jovens, maior vai ser a sua liberdade de escolha. Usar máquinas a seu favor aumenta o leque de escolhas de forma brutal. Por exemplo, um aluno que queira ser médico tem de entender o que pode ainda vir a fazer com a ajuda das máquinas. Se eu quero ir a Marte, o que é que eu quero fazer em Marte? Nestes raciocínios, estará sempre a ciência da computação.
Na ciência da computação, tudo deixa de ser para o aluno uma coisa abstrata para ser algo com uma vertente prática muito grande. Eles veem as coisas a acontecer. O que eles testemunham é matemática animada. A aprendizagem sai reforçada, é como reverem o que aprendem numa perspetiva diferente. E também existe um papel importante na igualdade de género. Temos visto que, de facto, raparigas e rapazes expostos a tudo de forma igual, sem barreiras, têm as mesmas oportunidades. Deixa de haver desequilíbrio, não há áreas mais para uns do que para outros. E a melhor forma de libertar é dar conhecimento.
Entrevista de Cynthia Valente