Jornais escolares — os primeiros vencedores

Tudo começou com uma vontade súbita de comer pipocas

Jornal da Escola do 1.º ciclo de Benfeita era fotocopiado em Coimbra, levado pelo professor quando ia a casa, ao fim de semana

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Professor e alunos, à porta da escola de Benfeita, no início dos anos 90 DR
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Adriano Miranda
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Professor Rui Pais de Carvalho com o jornal premiado Adriano Miranda
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São incontáveis e surpreendentes as coisas que podemos ficar a saber pelos jornais. Em Benfeita, uma das povoações do concelho de Arganil que integram a Rede das Aldeias do Xisto, há uns anos juntava-se a essa imponderável lista ainda mais uma possibilidade, com “grande impacto local”: os textos manuscritos publicados no jornal escolar O Pipocas transportavam consigo a informação de que determinado aluno já tinha aprendido a escrever. Não porque a proeza fosse tema de notícia, mas porque um texto, assinado e redigido com a singeleza da letra cuidadosamente desenhada, constituía “a prova, para a população”, de que o pequeno autor passara a dominar essa competência fundamental.

Isto mesmo recordou uma vez o professor Rui Pais de Carvalho, impulsionador do jornal desde a sua criação, num texto em que resumia a história de O Pipocas, vencedor, no seu décimo ano de vida, da primeira edição do Concurso Nacional de Jornais Escolares promovido pelo PÚBLICO na Escola, em parceria com o Correio Pedagógico. O prémio, no valor de 500 contos, obtido na categoria relativa ao 1.º ciclo do ensino básico (no secundário ganhou o Nova Maré), não foi aliás o único a distinguir o jornal da escola de Benfeita, que no mesmo ano letivo de 1991-92 ganhou também um concurso regional organizado pelo semanário A Comarca de Arganil.

Os jornais e o jornalismo sempre ocuparam lugar na vida de Rui Pais de Carvalho. Na Pampilhosa, concelho da Mealhada, o pai era correspondente e colaborava com o Diário de Notícias, O Comércio do Porto, O Primeiro de Janeiro... O filho prolongou a herança e levou-a para as escolas onde deu aulas. “Na minha juventude, sempre gostei do jornalismo e sempre andei nos jornais regionais. Mais tarde, tentei adaptar isso ao ensino”, conta agora, em conversa com o PÚBLICO na Escola.


A primeira experiência de jornalismo escolar a que esteve ligado foi na Escola Primária de Vinhó (Arganil). O Bolinhas, também ele mais tarde distinguido no mesmo concurso nacional, já depois da saída de Rui Pais de Carvalho, começou com uma difusão de 25 exemplares, copiados com recurso a papel químico e tabuleiro de gelatina — “chamavam-lhe, na gíria dos professores, o boletim da marmelada”. No início da década de 1980, o professor é colocado na Escola Primária de Benfeita, primeiro com as 3.ª e 4.ª classes e mais tarde com os quatro anos. “Os alunos foram diminuindo, fiquei sozinho.”

O Pipocas foi fundado em fevereiro de 1982. Antes, como sempre acontece quando nasce um jornal, foi preciso tomar a grande decisão de escolher o nome a dar-lhe. Uma vez mais como tantas vezes acontece, vingou o que resultou de um acaso e não de aturada reflexão. A sugestão de Alice, então com 9 anos, venceu o concurso de ideias que mobilizou os alunos para esse fim. O episódio é revelado no já referido texto de Rui Pais de Carvalho, recuperando a justificação apresentada pela aluna: “Naquela altura estava-me a apetecer pipocas e daí pensei, ‘O Pipocas’ é um bom título, e ganhei.”

O jornal da escola de Benfeita estreou-se com uma tiragem de 40 exemplares (mais tarde chegaria aos 500). Nos primeiros dez anos, era fotocopiado. Dito assim, parece muito simples. Ouvindo, hoje, os pormenores com que Rui Pais de Carvalho completa essa informação, já soa mais complexo. Acontece que “a fotocopiadora mais perto era em Coimbra; eu, quando ia de fim de semana à Pampilhosa, parava em Coimbra para tirar as fotocópias”. Ao regressar, para mais uma semana de aulas, transportava consigo toda a edição.

Entrevistar colhereiros

Carla Santos, uma das alunas da época em que O Pipocas venceu o primeiro concurso do PÚBLICO na Escola, recorda a experiência de jornalismo escolar como “uma aventura espetacular”. Rui Pais de Carvalho “era um professor cinco estrelas, que nos cativava para fazer essas coisas; havia lá colhereiros, por exemplo, e nós íamos entrevistá-los, para pôr no jornal”. O fabrico de colheres de pau é uma atividade com forte tradição na zona. A trabalhar num lar de idosos, Carla Santos continua a viver na região, mas não em Benfeita.

Hoje aposentado, Rui Pais de Carvalho, 69 anos, não demora muito tempo nem gasta muitas palavras a enunciar o que de mais importante se retirava da experiência do jornal escolar. “O grande projeto era escrever e valorizar o trabalho dos alunos.” Eles próprios depois o vendiam, localmente. “Era com a venda que íamos sobrevivendo. Eles sentiam o orgulho de ir vender um trabalho seu, que valorizava o positivo da freguesia.”

O noticiário produzido no interior da Escola do 1.º Ciclo do Ensino Básico de Benfeita, como entretanto passara a ser designada, não se confinava às páginas de O Pipocas. Acontecimentos da freguesia e iniciativas da escola eram relatados e enviados para outras publicações, como um suplemento infantil de O Comércio do Porto, a ‘Comarquinha' (do jornal “A Comarca de Arganil”) ou a secção ‘Agora falo eu’, na qual o Jornal de Arganil dava voz aos alunos.

O Pipocas chegou ao fim em dezembro de 1994. A própria escola fecharia 15 anos mais tarde, num contexto de reordenamento da rede escolar. Na sua fase final, o jornal era impresso a cores e alcançava uma tiragem de 500 exemplares, um número que não pode deixar de surpreender. O Censos 2011 regista um total de 394 habitantes em Benfeita. Mais recentemente, 315 era o número de eleitores inscritos para as eleições legislativas de outubro de 2019 (votaram 184). Rui Pais de Carvalho desvenda o mistério: “O jornal era vendido também em Lisboa, Porto e Coimbra. Muita gente da freguesia vive fora, as pessoas levavam-no. Havia uma senhora que me vendia em Lisboa cerca de 200 exemplares.”

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Carla Santos tinha 8 anos quando escreveu que gostava de saltar à corda e jogar à macaca Adriano Miranda

Também por isso, por se tratar de um meio pequeno, Carla Santos não tem qualquer dúvida de que é ela a Carla de 8 anos que assina um texto a dar conta do gosto por saltar à corda e jogar à macaca, a abrir a página 7 de uma das edições que o professor ciosamente guarda em sua casa. “Era eu. Na altura não havia lá mais nenhuma” com o mesmo nome.