Literacia mediática

Aprender com os jornais funciona melhor com as mãos na massa

A promoção da literacia dos media tem-se concretizado em projectos práticos que promovem também a cidadania dos jovens. Um esforço maioritariamente das escolas mas que tem muito a ganhar com a participação de profissionais: “As melhores pessoas para defender o jornalismo são os jornalistas”, defende a presidente do Sindicato.

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Nelson Garrido

Foi em 1988 que o professor Manuel Pinto descobriu a educação para os media, em Paris, quando andava numa missão para “saber o que é que devia ser uma escola de jornalismo” a propósito da criação da Escola Superior de Comunicação Social. Estava ainda no Jornal de Notícias, do qual chegou a ser provedor dos leitores, foi o primeiro coordenador do projecto PÚBLICO na Escola, hoje é professor catedrático em Ciências da Comunicação na Universidade do Minho. Naquela visita à UNESCO, lamentava que os jornalistas pudessem quase dizer o que quisessem ao público, sentindo que “não havia muita capacidade cidadã de reagir”, seja para identificar bons trabalhos ou criticar os maus. Eis que a interlocutora lhe respondeu que essa preocupação já era tratada numa disciplina chamada educação para os media.

O termo foi evoluindo ao longo do tempo. Desde a educação com os media (mais focada na utilização de novas tecnologias como recurso nas aulas) até à educação para os media (onde se compreende os processos de construção dos conteúdos), hoje fala-se cada vez mais em literacia mediática. Tornou-se prioridade em meio a um debate sobre desinformação e as chamadas fake news, assim como o dilúvio de conteúdos que nos chega através da Internet, em particular as redes sociais. Distinguir factos de opinião, informação de entretenimento, uma notícia de um artigo escrito para enganar — eis o que, nos últimos anos, se percebeu que nem todos os cidadãos estão preparados para fazer.

É aqui que ganham destaque projectos como o PÚBLICO na Escola, que volta à acção neste ano lectivo juntando-se a uma série de outros esforços, em particular ligados às escolas, para promover um maior conhecimento sobre o funcionamento dos media. Para a professora Luísa Gonçalves, co-responsável pela iniciativa ao lado da jornalista Bárbara Simões, um dos grandes objectivos será promover a articulação entre diversos projectos, para “não estarmos cada um a trabalhar no seu canto”. “Há muita coisa a ser feita”, mas ainda não o suficiente: a educação para os media é um “trabalho continuado que tem que ser feito” e não se pode limitar a sessões pontuais. Docente do primeiro ciclo, Luísa Gonçalves acredita que “é possível integrar estes projectos nas actividades” das escolas, “pôr os alunos a trabalhar em questões que lhes digam alguma coisa”.

Fosso entre jornais e públicos

Para Maria José Brites, docente da Universidade Lusófona do Porto, a importância dos media na formação para a cidadania tornou-se clara ao longo do seu doutoramento, quando estudou a relação dos jovens com as notícias e participação cívica. E a eficácia das iniciativas neste campo é tanto maior quanto mais continuadas: “Temos um défice de cidadania, um défice de cultura cívica”, alerta a investigadora. “E isto de modo algum se resolve com um projecto.”

A investigadora do Centro de Investigação em Comunicação Aplicada, Cultura e Novas Tecnologias (CICANT) nota que os adultos têm um papel importante em trazer os jovens para a conversa sobre as notícias, e não apenas professores e jornalistas. “Os contextos familiares são fundamentais”, sublinha, recordando alunos menos ligados às notícias que lhe contavam que se sentiam à parte nas conversas em que a família comentava as notícias. Para estes jovens, “era uma conversa de adultos”. Já entre os colegas mais entusiasmados com as notícias, para quem “informação é poder”, era mais habitual falarem de conversas em família em que todos eram ouvidos. 

Maria José Brites ouviu também alguns jovens queixarem-se de que “a agenda dos jornais não responde aos seus interesses”. E há ainda um fosso de outra ordem entre cidadãos e empresas de media, alerta a investigadora. Nas entrevistas que fez com alunos e familiares, “sentiam alguma falta de proximidade, de perceber o que é a cultura jornalística”. E se as portas das redacções parecem não estar tão abertas, espreita-se pelas janelas à disposição: houve quem contasse que ficava atento ao jornal na televisão para ver a redacção a trabalhar por trás do pivot, “atento a ver o que se passava ali para ver como funcionavam”. 

Nas experiências relatadas, as memórias que os jovens “valorizavam muito eram a dos jornais escolares em que sabiam que tinham uma voz”. Isto significa, por exemplo, dar mais liberdade na edição — e confiar nas escolhas dos alunos. 

É importante que os estudantes tenham um papel central nos processos de decisão dos jornais escolares. “Dar voz, dar vez, valorizar a expressão dos alunos”, sintetiza Manuel Pinto, recordando ainda a Convenção dos Direitos das Crianças (que completa 30 anos), que inclui não apenas direito à protecção mas também à participação das crianças e jovens: à liberdade de expressão, a ser ouvida, em particular nas decisões que lhe dizem respeito, e a ser levada a sério. 

Pensamos ainda nas crianças como “cidadãos do futuro e não cidadãos do presente”, lamenta o investigador. “Temos dificuldade em reconhecer a cidadania das crianças e adolescentes”, por exemplo, em questões como a liberdade de expressão, de manifestação. Se, por um lado, os jovens têm dado lições de cidadania com iniciativas como as greves pelo clima, ainda há muitos contextos, em particular os mais formais, em que continuam a ser controlados e a não poder ter voz: por exemplo, “sobre a escola que querem ter”.

Papel dos jornalistas

Que importância devem ter os jornalistas e jornais neste esforço? Para Sofia Branco, presidente do Sindicato dos Jornalistas, um papel preponderante. “O que se está a exigir dos cidadãos é uma cidadania activa”, nota — e também é preciso pedir o mesmo dos jornalistas, até porque “não precisamos fazer de conta que têm o mesmo prestígio”. O Sindicato dos Jornalistas coordena um projecto-piloto financiado pela Direcção-Geral de Educação e pelo Centro Protocolar de Formação Profissional para Jornalistas (Cenjor), que conta ainda com o alto patrocínio da Presidência da República. A literacia mediática era uma das prioridades da resolução final do 4.º Congresso dos Jornalistas Portugueses, realizado em Lisboa no início de 2017. No final desse ano, um grupo de 80 jornalistas (incluindo seis do PÚBLICO) foram formados pelo Cenjor. 

Sofia Branco enumera as dificuldades encontradas. Antes de mais, a falta de meios de muitas escolas, por oposição a outras bem apetrechadas. Depois, a importância de ter professores com cargos executivos nas formações, que abrem portas para que os projectos se tornem mais sustentáveis no contexto das respectivas escolas. Por fim, a falta de tempo dos professores, afundados em actividades e diversas tarefas para cumprir.

Neste ano lectivo, por comparação ao ano passado, o projecto do SJ duplica de dimensão: passa de um núcleo de cinco para dez escolas, de uma centena para cerca de 200 professores formados. Nas próximas semanas, estão agendadas formações de um novo grupo de 60 jornalistas que poderão dar apoio às actividades com os alunos. Sofia Branco nota, contudo, que apenas um quarto destas pessoas estão certificadas para dar formação aos professores. “Acreditamos que as melhores pessoas para defender o jornalismo são os jornalistas, e temos que saber explicar isso a uma criança de três anos como a um velhinho de 90” — algo que é facilitado através de competências certificadas, pelo que Sofia Branco lança um apelo aos jornalistas para que procurem essa formação.

Mas nem todos pensam assim. No seu projecto de pós-doutoramento, em que continuou a investigar a relação dos jovens com os media, Maria José Brites falou com jornalistas, editores, coordenadores de projectos deste tipo e provedores de leitores e concluiu que, para grande parte dos jornalistas, o seu papel no campo da literacia mediática cinge-se a fazer notícias com rigor e qualidade. Ou seja, juntar-se directamente à formação de públicos não é visto como uma tarefa prioritária das redacções, relata a investigadora, em particular num contexto de falta de recursos para o trabalho essencial de produção de notícias.

Para Manuel Pinto, que formou professores no âmbito do projecto de literacia mediática liderado pelo SJ, a participação dos jornalistas na educação para os media poderia mesmo ser vista como uma forma de enriquecer o seu trabalho, uma oportunidade para ouvir em particular os adolescentes e não apenas explicar o que é jornalismo. “Porque é que os miúdos hoje têm tanta dificuldade em ligar-se à informação? O que é que eles esperam? O que é que eles gostavam?”, questiona o investigador. “Às vezes presumimos o que os outros querem, o que gostam ou o que precisam, e pode ser um acto de uma certa arrogância presumir isto sem escutar suficientemente.”