O Cerco é uma família (a precisar de ajuda)
O Presidente da República encerra as cerimónias de tomada de posse no Porto e o programa inclui uma visita ao Bairro do Cerco, um dos maiores e mais degradados da cidade.
Pulquéria Silva, de 67 anos, vai pôr colchas à janela. Colchas de cetim, daquelas que saúdam as procissões nas casas mais tradicionais do país. “Afinal, vem cá o Presidente, não é?”, diz. Só tem receio que o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, não veja os enfeites colocados de propósito para ele, porque a casa de Pulquéria, moradora no Bairro do Cerco do Porto desde que este foi inaugurado, em 1963, fica numa das pontas do aglomerado, voltada para o exterior.
E isso tem coisas boas e tem coisas más. A má é que se a comitiva presidencial não escolher este acesso, não verá as colchas de cetim de Pulquéria. A boa é que ali, garante a moradora, “é tudo muito sossegado”. Os vizinhos são idosos, como ela, os laços não se perderam. Por isso é que Pulquéria não hesita em dizer que o Cerco, para ela, “é uma família”. Descrição repetida por muitos moradores, mas que não oculta os problemas de um dos maiores bairros camarários da cidade e também dos mais degradados.
Os números podem ser avassaladores. O Bairro do Cerco do Porto tem 34 blocos, 892 casas, 835 famílias, e um total de 2074 habitantes. Destes, 650 não têm rendimentos oriundos do trabalho e há 354 pessoas que declaram um rendimento mensal inferior ao do salário mínimo. Carla Carvalho, assistente social da Junta de Freguesia de Campanhã, tem que atender aos problemas sociais de todos os moradores – além dos de dois outros bairros da freguesia que estão sob a sua alçada. Ela sorri, encolhe os ombros. Sabe que é uma loucura, que é impossível responder a tudo. Mas todos os dias faz o que pode.
Por isso é que, enquanto atravessa o bairro, pára para ouvir as mulheres que a abordam e as trata a todas pelo nome. Pobreza, tráfico e consumo de droga, insegurança, os problemas são sempre os mesmos. Durante largos minutos, deixa-se ficar a conversar com Adelaide de Jesus, que aos 56 anos, vive numa velha carrinha branca estacionada junto ao largo central do bairro onde, esta sexta-feira, Marcelo Rebelo de Sousa deverá assistir a uma performance do Oupa!, o projecto artístico nascido no Cerco, com jovens do bairro, no âmbito do programa camarário Cultura em Expansão.
Adelaide quer uma casa e é isso que tem repetido incessantemente à assistente social, e que volta agora a reclamar enquanto descasca, com dificuldade, batatas para o almoço. Mas Adelaide não está registada como vivendo no Porto há pelo menos cinco anos, pelo que não está apta a candidatar-se a uma habitação camarária. A uma casa, daquelas que a rodeiam. E Adelaide tem uma doença degenerativa, que muito em breve irá obrigar a um acompanhamento permanente – já o exigiria hoje – e, por isso, Carla sabe que, apesar de um pedido de habitação para a mulher estar nas listas do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana desde Dezembro de 2014, a casa nunca lhe deverá ser atribuída. Do que Adelaide precisava era de alguém que fosse viver com ela ou de entrar num lar, mas a mulher recusa as duas opções. E vai ficando na carrinha.
Não se sabe se o Presidente da República irá ver Adelaide, mas vai ver, de certeza, o resultado da azáfama que nos últimos dias tomou conta do bairro. As crianças do jardim infantil ensaiam cantigas. Os funcionários camarários desdobram-se em trabalhos. Limpam-se muros com jactos de pressão. Corta-se relva. Apanha-se lixo. Pintam-se paredes com tinta branca. Olhem, ali, no meio do caminho, há um rato morto, enorme, já seco de dias, mas talvez os funcionários passem por lá a tempo de o recolher. Ou talvez o Presidente não passe por ali. Da janela, um homem grita para um vizinho: “Se não viesse cá o Marcelo não faziam nada disto”.
O vereador da Habitação e da Acção Social na Câmara do Porto, Manuel Pizarro, garante que muito mais se vai fazer. Que o facto de ser preciso fazer ainda muito no Cerco, foi a razão pela qual a autarquia o escolheu, quando Marcelo Rebelo de Sousa manifestou o desejo de visitar um dos bairros sociais da cidade, na visita que marca o fim das cerimónias da sua tomada de posse. “Sugerimos que fosse um bairro na zona Oriental e que fosse o Cerco, porque está longe de ter tido toda a intervenção necessária”, disse o autarca ao PÚBLICO.
O dia é do Presidente, por isso a câmara não vai fazer anúncios sobre essa “intervenção necessária”, mas Pizarro garante que a autarquia está “a preparar um projecto, tendo consciência que num espaço destes a intervenção tem que ser mais profunda e diversificada do que nos blocos de habitação”. O que o vereador quer para ali, revela, é uma intervenção integrada, com investimento do Estado, “inspirada” no programa interministerial que permitiu mudar um outro bairro da zona Oriental, o do Lagarteiro, recuperando blocos habitacionais, o espaço público e os acessos. Uma intervenção que envolva os serviços de ”saúde, educação, acção social e promoção profissional”, diz. E esta sexta-feira, mesmo sem anúncios para fazer, a mensagem que espera que os moradores guardem não é a de que os serviços camarários só aparecem em força quando há uma visita presidencial. “Espero que as pessoas sintam que a Câmara do Porto e o Estado português não esqueceram a zona Oriental. Tenho a expectativa que as pessoas aproveitem a ocasião para mostrar que têm direito a receber um investimento público que lhes melhore a qualidade de vida”, diz.
Francisco Almeida, de 35 anos, coreógrafo, não gosta de estar sempre a ouvir dizer que o Cerco é um bairro problemático. Ele sabe o que o bairro é. Ele é dali. E sabe que o bairro precisa de muita coisa. Mas também sabe que o bairro tem muitas coisas boas. Olhe-se para ele. Era um “guna” em miúdo, admite, com um sorriso largo. Depois, a dança mudou-lhe a vida. Envolveu-se em projectos internacionais, tem a sua própria companhia, sabe que há muita gente nova com talento no Cerco. “No bairro toda a gente se conhece e nós já sabíamos que existe aqui um grupo de artistas que tem valor. Temos material muito bom, material que é preciso trabalhar. Vocês, lá fora, é que não sabiam, e o Oupa! está a ajudar a mudar isso”, diz.
Também ele fala em “família” para descrever o bairro, e em “casa”. No final de contas, reduzido ao essencial, é isso que o Cerco é para quem lá mora. Mário Ferreira, bailarino de 23 anos, usa as mesmas expressões. “É a minha casa, o local onde podemos ir bater à porta da vizinha pedir alguma coisa. O bairro é o bairro!”, diz.
Mas o bairro mudou. Hoje o Cerco tem menos moradores – em 2010, quando terminou o Contrato Local de Segurança para o Bairro do Cerco, o diagnóstico apontava para 3303 habitantes – e Carla Carvalho, a assistente social de serviço, tem a sua opinião sobre o que aconteceu. A palavra que usa é “desagregação”. Quando o anterior presidente da Câmara do Porto, Rui Rio (PSD), pôs em marcha o processo de demolição do Bairro de S. João de Deus, muitos dos seus moradores foram realojados no Cerco. Foi preciso reaprender a viver com os novos vizinhos e nem tudo correu pelos ajustes. A assistente social dá um exemplo: antes, um morador do bairro não temia que algum vizinho lhe assaltasse a casa. Esse era um problema que poderia acontecer apenas com a intervenção de agentes exteriores. Agora, uma pessoa ausenta-se por alguns dias e pode encontrar a casa vazia no regresso. Já aconteceu. Muitas pessoas pediram para sair, outras recusavam ir para o bairro, por isso Carla diz que o mais urgente é criar projectos que liguem as pessoas, que as façam sentir parte de um todo outra vez.
Isso já existe, insiste Francisco Almeida. O S. João de Deus já desapareceu há quase dez anos, e alguns dos que lá viveram eram crianças. “Crescemos juntos, adaptamo-nos uns aos outros”, insiste.
Isilda Matos, 86 anos, uma moradora de sempre do bairro, ou o vizinho, Álvaro Cardoso, de 53, que só chegou há seis meses, também não querem ouvir falar de conflitos. Gostam do bairro, pedem apenas que lhe resolvam problemas demasiado comezinhos para as preocupações de Marcelo Rebelo de Sousa – um portão que não fecha, a humidade entranhada nos quartos. Mário Ferreira está curioso para ver se o Presidente da República vai fazer “uma visita de médico” ou se vai mesmo ali para “ouvir o povo”.
Espera que seja a segunda hipótese. Afinal, depois de ter sido inaugurado pelo Presidente Américo Thomaz, nenhum outro voltou ali. Jorge Sampaio foi à escola, mas não às ruas do bairro. E Mário Soares deu lá um salto. “Mas foi em campanha”, diz Manuela Costa, dona de um dos cafés do Bairro do Cerco do Porto. Nessa altura, ele ainda não era Presidente.