O banqueiro que vergou o Estado
Um gestor fez do Governo o que não faria de nenhum accionista: um agente subalterno.
Não é político com ambições globais nem é ponta-de-lança na Selecção, mas nem por isso António Domingues, o novo líder da Caixa Geral de Depósitos, deixa de ser por estes dias o português mais falado de Portugal. O que não admira: raras vezes um homem foi capaz de subjugar de forma tão competente o poder político, de se tornar o centro de uma tempestade que atravessa as pontes do Parlamento e de criar um “incómodo nacional”, como bem diz Catarina Martins. Hoje, com excepção de António Costa e do ministro Mário Centeno, todos lhe apontam o “inaceitável” salário que vai receber na Caixa, mas poucos notam que esse vencimento simpático é apenas uma peça de um puzzle no qual o Governo se vergou perante as majestáticas exigências do banqueiro. A história do salário faz agora furor, mas há muitos meses que o ex-vice presidente do BPI se comporta como um Messias e Centeno como o frade franciscano à espera da redenção. Dinheiro, equipas, poder exclusivo na gestão, acesso a informação sensível, isenções de regras de transparência aplicadas a todos os gestores públicos, tempo, promessas de meios para limpar a Caixa, tudo Domingues pediu e tudo Centeno lhe deu. A depreciação da Caixa e a erosão do capital político do Governo são as facturas que, para já, estão em cima da mesa.
Depois de tudo o que conseguiu, António Domingues só não pode ser visto como o “dono disto tudo” porque a designação está minada por suspeitas de crimes dolosos e o banqueiro foi clarinho como água na sua ambição e nos meios que pôs em cima da mesa para a cumprir. Experiente, inteligente e competente como é, bastou-lhe pôr-se nos píncaros e subalternizar quem o queria contratar. Na prática, é ele quem tem mandado em tudo o que se relaciona com o processo da Caixa. Foi ele que disse ao Governo que só aceitaria deixar o BPI se o Governo fizesse uma alteração do Estatuto do Gestor Público que lhe permitisse ganhar como os seus pares e que o poupasse ao aborrecimento de mandar uma declaração de rendimentos para o Tribunal Constitucional, outra declaração de participações em empresas para a Inspecção-Geral de Finanças e ainda outra declaração de incompatibilidades para a Procuradoria-Geral da República.
Do alto do seu poder, exigiu estudar a fundo os dossiers da Caixa quando ainda era pago pelo banco concorrente, o que permite as legítimas suspeitas de Passos Coelho sobre o alcance das suas diligências - ele andou pelos corredores da Caixa apenas para analisar “informação pública”? Da sua posição de força, exigiu dialogar com o Banco Central Europeu (BCE) para determinar a baliza da recapitalização, exigiu nomear quem quisesse de acordo com uma fórmula que dispensava o equilíbrio vigilante de um chairman e que impunha uma legião de segundas linhas que violava até a lei portuguesa (disse-o o BCE). E sobre todo este pano de fundo, ainda teve poder para decidir quando iria assumir o seu cargo na Caixa, deixando o banco meses a fio sem gestão estratégica. Ele, não, Mário Centeno.
Já aqui escrevemos que o processo de substituição da anterior gestão do banco público constituía um erro do ministro das Finanças. A Caixa esteve meses bloqueada e levou à demissão da anterior equipa de gestão apenas porque Mário Centeno ficou refém das suas próprias escolhas. É normal e desejável que o Governo desenhe uma estratégia para um banco, que escolha a equipa para a desenvolver e discuta com ela as condições de sucesso. Mas, depois de Maio, quando falhou a primeira tentativa para nomear a gestão da Caixa, soube-se que Mário Centeno ficara resumido ao papel de assessor de Domingues, um protagonista dedicado a remover obstáculos para que o banqueiro se dignasse aceitar o desafio na Caixa. O que não se sabia é que o seu salário está acima dos 400 mil euros anuais, que pode chegar aos 600 mil e que tinha conseguido desobrigar-se de prestar contas e de se submeter ao escrutínio que a República exige a todos os que a servem.
Se quanto ao salário pouco há a dizer (não faz sentido que um profissional com o seu currículo, que recebia um vencimento similar no BPI, tivesse de pagar do seu bolso para servir o Estado), quanto às isenções de envio de declarações para as entidades competentes o que fica em causa é uma inaceitável subversão de princípios. Tem razão Catarina Martins quando afirma: “Não há ninguém no país que consiga compreender os salários milionários, mas muito menos se pode aceitar a falta de escrutínio”. Por que razão há-de um ministro ser obrigado à transparência e o presidente da Caixa não? Não tratam ambos de matérias de interesse público? Não trabalham ambos com os nossos impostos, não devem os dois dar completas garantias que serviram o público e não se serviram dele?
Com a polémica a estalar pelo lado menos interessante, embora mais populista (os portugueses odeiam quem ganha bem e esse é um dos atavismos que nos colam irremediavelmente ao atraso), a história da Caixa ainda terá muito para contar. Pode ser que o Parlamento reverta o decreto do Governo sobre as mudanças do estatuto dos gestores públicos. Pode ser que a magistratura de Marcelo, que já no momento da aprovação dessas mudanças tinha lembrado que a Caixa estava a ser alvo de uma intervenção pública, o que recomendaria probidade nos salários, se faça ouvir. Pode ser que António Costa faça as contas aos danos da sua imagem de esquerda e tente remediar o problema. Voltar atrás seria um desastre ainda maior e não se acredita que António Domingues abdique sequer de uma alínea das exigências que fez. Mas quem julga que, superado o drama dos vencimentos, a história acaba, está enganado.
O que vem a seguir é o plano de recapitalização e aí se verificará se António Domingues vai ser o super-homem da gestão, o Messias ao qual se deve tudo para que possa restaurar o brilho da Caixa. Para já, ele conseguiu condições ímpares para meter o banco público na ordem. Com tanto dinheiro previsto para a recapitalização, não faltam meios para limpar imparidades, para fazer uma reestruturação profunda e para colocar o banco numa posição de força. Claro que essa obra se fará sem grande risco, à nossa custa, mas isso é outra conversa. O que fica já para memória futura será sempre essa relação na qual um gestor fez do Governo o que não faria de nenhum accionista: um agente passivo, subalterno, condescendente e fraco.