De tão sincera, a abstenção que anda pelas ruas chega a ser desconcertante

São jovens de 24, de 29 anos. De 41, 44. São novos e vivem afastados política. Nem fingem interessar-se, assumem um total alheamento. Não vão votar neste domingo. Porquê? O que leva alguém a não exercer o seu direito?

Ana Morgado, 41 anos
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Ana Morgado, 41 anos Ricardo Campos
Maria da Luz Timóteo, 88 anos
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Maria da Luz Timóteo, 88 anos Ricardo Campos
Miguel Tavares, 41 anos
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Miguel Tavares, 41 anos Ricardo Campos

Um, dois, três, quatro, cinco, seis. Em 20 pessoas com quem nos cruzamos nas ruas de Lisboa, num dia de Janeiro e de sol, seis não vão votar nestas eleições presidenciais. Uma não sabia, 13 querem exercer o seu direito. Um, dois, três, quatro, cinco, seis. São seis e algumas são muito jovens. As razões têm tanta desilusão e afastamento da política e são ditas com tanta sinceridade que chegam a ser desconcertantes. Exemplos: “não tenho paciência para me levantar e votar”; “não percebo nada do que eles dizem”; “não ligo a isso”; “estou totalmente descrente”; “simplesmente não me consigo envolver”.

Um: Miguel Tavares, 41 anos, trabalha na construção civil, electricista. Está de folga e sentado a apanhar sol, na Praça da Figueira. À volta, há grupos de jovens a conversar. Taxistas encostados aos carros. Noutra fila, estão estacionados os tuk-tuk. Uma das condutoras diz-nos com convicção que vai votar. É um dia de semana, há gente a entrar e a sair dos autocarros. Faltam seis dias para as eleições. Uma jovem que está na paragem a ler O Retrato de Dorian Gray sorri quando lhe perguntamos: claro que vai votar.

Não é o caso de Miguel Tavares, o primeiro dos abstencionistas com quem nos cruzamos. “Não vou votar, porque não tenho paciência para me levantar e votar. Acho que é por estar desmotivado.” Não acredita que o voto faz a diferença? O cenário que resultou destas legislativas, por exemplo, não o surpreendeu? “O Governo mudou, os resultados vamos ver”, diz de forma sucinta.

Tem família, mulher e três filhos – 12, 15 e 17 anos. Preocupa-se com o futuro deles, mas isso não é suficiente para ir às urnas. “A minha mulher vai votar, pensa que, ao votar, as coisas mudam. Ela vota por mim e depois a gente vê se as coisas mudam ou não.” Já trabalhou na Holanda cinco anos, agora está em Portugal: “Gosto meu país, mas, quando trabalhamos cá, temos de ficar desiludidos. Os salários baixos, a alimentação cara…” Então e isso não são motivos para votar? “Não, não vou”, repete, novamente de forma sucinta.

Dois: Paulo Duarte, 44 anos, taxista. Contamos como o segundo abstencionista, porque nos diz que o mais provável é não ir à mesa de voto. Em toda a vida só o fez três vezes. Mas “depende do ânimo” com que se levantar. É casado, a mulher é cozinheira, tem seis filhas, a mais nova com 11 anos, a mais velha com 28. Não é fácil: “Então não há-de ser difícil? Mas há alguém com uma vida fácil agora?” Mesmo assim, não está com vontade de participar no acto eleitoral: “Não percebo nada do que eles dizem. Não falam para ninguém perceber. E o que dizem hoje não é amanhã. Só falam para ganhar votos.”

Três: Rita Martins, 24 anos, vendedora numa loja de roupa. Está no Rossio, à espera do namorado. Antes de nos cruzarmos com a jovem que tem o 12.º ano, passa um vendedor de cautelas. Rita Martins avisa logo que está com pouco tempo para falar. Resume: “Não vou votar, porque não ligo a isso. Fazer diferença, deve fazer, eu é que não tenho tempo, nem paciência. Nunca votei.” Mas é por estar desiludida? “Não é por desilusão, é porque não faço ideia, não percebo nada de nada, não percebo nada de política.” Não viu os debates televisivos entre os candidatos, não leu os jornais: “Não é uma coisa com que perca tempo.” O que a move? Trabalhar, sair com os amigos, namorar, enumera.

Política e amor
Quatro: Maria da Luz Timóteo, 88 anos, reformada. Está sentada num banco no Rossio, a bengala à frente. Acabou de comer castanhas assadas, diz que estavam muito boas e que está muito bem ali, ao sol. Votar? “Oh, já não estou para essas coisas, tenho 88 anos.” O caso desta antiga costureira, que começou a trabalhar aos 11, é, porém, diferente. Fala do PCP como o partido que adora, foi casada com um antigo militante que chegou a ser preso pela PIDE. Ficou viúva nova, há tanto tempo que já nem se lembra. O marido chamava-se César da Fraternidade, era 24 anos mais velho. Primo em segundo grau, padrinho, homem. “Aquele homem foi tudo na minha vida. Era muito amoroso, carinhoso.”

A política nunca lhe foi indiferente ao longo da vida, é só agora, diz. Agora é que já não está para sair e votar. Em casa, onde vive com o gato, vai vendo televisão, mas não sabe o nome do candidato apoiado pelos comunistas e no qual votaria, se fossem outros tempos. Só sabe o da direita: “Rebelo de Sousa.”

Cinco: Ana Morgado, 41 anos, argumentista. Licenciada na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e agora a escrever para televisão, está a passear com a mãe na Rua da Palma. Dá-nos o testemunho e aceita ser fotografada, mas já sabe que vai ser criticada pelos colegas pela sua posição.

“Não voto, é uma questão de consciência. Não me identifico com nenhum dos candidatos. Acho que o meu voto não vai mudar nada. Estou totalmente descrente. Nem sinto que os nossos políticos sejam próximos das pessoas. Só durante a campanha, em que andam a distribuir beijinhos nas feiras e nas ruas.”

Nunca votou, sempre teve esta relação desiludida com a política. Por que não vota em branco? “Não sei explicar. Talvez seja comodismo, falta de identificação, talvez tenha tido outras prioridades. Sou muito criticada pelos meus colegas. Mas detesto o mundo político, acho que é uma promiscuidade a todos os níveis. Não me parece que o interesse dos políticos seja fazer o bem dos cidadãos, têm interesses pessoais. Acho que é tudo uma grande hipocrisia, simplesmente não me consigo envolver.”

Admite que pode ser uma percepção injusta: “Se calhar paga o justo pelo pecador. Mas tudo o que leio, vejo, me leva a este descrédito. Pode ser que alguém me faça mudar de ideias. Nem toda a gente é como eu, tenho colegas acérrimos defensores do voto. Sei que é um direito conquistado e prefiro viver numa democracia. Mas sou uma cidadã passiva, não luto por ideais.”

Seis: David, 29 anos, designer freelancer. Não dá o último nome. Atravessa em passo rápido o Largo do Intendente quando lhe conseguimos perguntar se vai votar neste domingo. “Não.” Não vê notícias, sente uma “indiferença completa” em relação à política, não o “aquece, nem arrefece”, está “descrente”, não precisa “deles” para a sua vida. Como não precisa? As decisões políticas não interferem na sua vida? “Não, sou um homem do mundo, não páro cá.” Diz que viaja muito em trabalho, já esteve meio ano na Argentina.

Estudou design – licenciatura e mestrado. Agora está a fazer uma pós-graduação na área do marketing. A relação com a política não foi sempre assim desapaixonada, mudou quando saiu da faculdade. Antes disso, interessava-se mais e dizia-se de esquerda. “Acreditava que o meu voto podia mudar as coisas.” Depois, quando regressou da Argentina, por volta de 2011, “só ouvia uma palavra – crise” e isso fê-lo afastar-se. “Não lido bem com palavras negativas.” Um, dois, três, quatro, cinco, seis. Nas últimas presidenciais, em 2011, a abstenção rondou os 53,5%.

 

Notícia alterada às 17h30: Foi substituída a expressão "desacreditada" por "descrente".

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