A nova modernidade ultrapassa o Estado e a Constituição
Segundo Gomes Canotilho, 40 anos depois, a lei fundamental ainda garante o contrato social, mas foi ultrapassada em importância por um ramo do direito ainda embrionário que conjuga dimensões públicas e privadas, nacionais e supranacionais. E fala economês.
Um dos nomes mais relevantes do Direito Constitucional da actualidade, Prémio Pessoa em 2003, José Joaquim Gomes Canotilho, analisa o estado da democracia portuguesa e da lei fundamental, avalia a actual conjuntura política, lamenta que a social-democracia esteja a desaparecer. E avisa: há um novo direito a ser escrito todos os dias, por cima da nossa realidade.
Passados 42 anos sobre o 25 de Abril e 40 sobre a aprovação da Constituição, como avalia a confiança dos cidadãos na democracia?
A democracia como valor dialógico e fundante de uma comunidade e como um valor que alimenta a autodeterminação dos povos, em si mesmo, é um valor indiscutível. O problema está em saber se as várias modernidades que nós tivemos contribuíram para uma compreensão do princípio democrático em todas as suas dimensões. Quando fizemos a Constituição, a esquerda a que eu pertencia inseriu no texto o socialismo e a aliança Povo-MFA – era uma narrativa emancipatória, o texto serviu para alicerçarmos princípios constitucionais dos dois lados, onde conviviam o optimismo da vontade com os ditames da revolução. Essa foi a primeira modernidade, mas desapareceu, embora alguns ainda argumentem com o preâmbulo da Constituição.
A segunda modernidade conduziu ao alicerçamento do Estado social, com positivação de todos os direitos económicos, sociais e culturais, com o dever do Estado de criar políticas públicas de Saúde, Educação e Segurança Social. Este é hoje um dos tópicos das propostas de revisão constitucional, porque não temos respostas definitivas quanto à sua sustentabilidade.
O projecto de Passos Coelho [2010] que ficou pelo caminho pretendia alargar a dimensão pública aos privados, sobretudo na Educação, o que legitimaria a utilização de dinheiros públicos em estabelecimentos privados. Eu não sou contra a contratação com entidades privadas, quando necessário, mas o que está na Constituição é o dever de o Estado ter ele próprio escolas, hospitais, esquemas de Segurança Social.
É este o nosso contrato social?
É, mas esse é hoje o ponto mais debatido, porque mexe com a sustentabilidade das políticas públicas que já não depende de nós: depende das instituições europeias e do Fundo Monetário Internacional, das matrizes comunicativas anónimas. Mas tenho a certeza de que, se fizéssemos um referendo e perguntássemos se as pessoas concordam que o Estado continue a gastar uma verba substancial para ter um SNS, uma escola pública, não tenho dúvidas de que ganharia o sim. Mas isto exige políticas públicas, não digo de austeridade, mas de grande rigor e com alguma comparticipação do utente para mantermos a bondade dos nossos sistemas.
Como acontece já com as universidades?
Sim. Quando o Sousa Franco, o Marçal Grilo e eu fizemos parte de uma comissão de financiamento do ensino superior, ficou claro que o objectivo do Estado era cortar nas despesas com as universidades e estas teriam de encontrar as suas receitas próprias, como agora acontece. Nesse sentido eu aceito a discussão, mas não no sentido do neoliberalismo que quer transformar todos estes bens em commodities [mercadorias]. A questão ideológica é esta: é saber se isto são bens da comunidade, o bem comum que fundamenta a Res publica, ou se são apenas interesses individuais ou corporativos. A Casa Comum de Aristóteles é bem actual, a ideia de que esta casa comum nos é dada de empréstimo, não é um património, nós estamos de passagem. Mas essa ideia de bem comum tem vindo a desaparecer dos discursos, dando lugar a conceitos de feição neoliberal. E agora grandes economistas como Joseph Stiglitz ou Thomas Piketty vêm dizer que tudo isto é político e não meramente económico. Não podemos é ser ingénuos do ponto de vista financeiro.
A gestão dos interesses por detrás do bem comum leva-nos a uma outra questão: está a democracia condenada à corrupção?
Não há dúvida nenhuma de que todos pecamos e pecamos gravemente. As ligações perigosas, a corrupção, a transferência de dinheiro para o estrangeiro, tudo isso sobrecarrega o rendimento do trabalho, as reformas e as próprias empresas, que vêem fugir a liquidez dos bancos. Não é correcto termos de pagar impostos altíssimos para outros transferirem dinheiro para offshores. Estamos agora a ter noção disso, com casos como o do Panama Papers, e estamos a falar de processos transversais à nossa civilização. Veja-se, por exemplo, as empresas tecnológicas, que estão em todo o mundo e não pagam impostos. Tudo isto agrava o problema da sustentabilidade. Mas a corrupção não é uma fatalidade.
Temos feito o suficiente para tornar a administração mais transparente?
Tem-se feito muita coisa, com os registos de interesses, as incompatibilidades, as declarações de rendimentos, os períodos de nojo, que são práticas da boa administração. Mas não são da administração pública, também têm de dizer respeito à governance [no sentido da União Europeia: forma de governar baseada no equilíbrio entre o Estado, a sociedade civil e o mercado, ao nível local, nacional e internacional], porque também estão em causa recursos privados na administração do bem comum, como nas parcerias público-privadas (PPP).
Começa a haver uma zona muito cinzenta entre o que é público e privado…
As PPP são instrumentos muito importantes de concretizar objectivos comuns com a participação de capital privado. A grande questão das PPP surge com um esquema de protecção de riscos anormal e opaco. Mas precisamos de PPP para ter investimento.
Como é que o direito constitucional pode ajudar a restabelecer a confiança dos cidadãos na democracia?
O direito constitucional sozinho pode pouco, porque em rigor o direito constitucional estava ligado à Constituição e esta ligada ao Estado. O que temos hoje são políticas públicas supranacionais e as Constituições ficaram com as dimensões económicas entre parênteses. Hoje a nossa Constituição económica é a Constituição da União Europeia. O Estado hoje é insuficiente, algumas políticas já não são do Estado, são da UE.
Se o direito constitucional pode pouco, quem nos rege nestas novas modernidades?
É um novo direito, que está relacionado com as crises económica, financeira e bancária. É um misto de direito regulativo, fiscal, bancário, administrativo, constitucional e que faz apelo a esquemas de governance, com a sua lógica própria; perante a volatilidade dos mercados, tem de haver um esquema suficientemente ágil e flexível para responder às questões bancárias. Perante a fragilidade de um banco, o que fazer? Vender, fazer uma resolução? A resolução é o ponto imediatamente antes da falência. Toda essa lógica da governance adaptativa é uma lógica nova e que convoca vários saberes cruzados, numa zona que está entre o direito administrativo e constitucional.
Como chamaremos a este novo direito?
O Novo Direito Administrativo, que é alemão, tem três volumes e demorou dez anos a fazer (em que participou o presidente do Tribunal Constitucional alemão), reflecte toda esta nova realidade. Tem em conta todo o processo de privatizações, de parcerias público-privadas, do governo electrónico. O Direito Constitucional não conhece essa realidade, mas fornece os instrumentos garantísticos que são invocados neste contexto, quer seja relativo à propriedade, quer à forma de recurso aos tribunais. Não é fácil de um momento para o outro lidar com esquemas jurídicos muitas vezes híbridos, esquemas económico-financeiros que os juristas desconhecem, e articulá-los com as Constituições e os tratados internacionais.
Os agentes deste novo direito tanto podem ser bancos, empresas multinacionais como Estados?
Sim, e podem ser bancos que tinham comprado dívida ao Estado e por isso fragilizam os países. Toda essa problemática tem de ser estudada, desafia as universidades, para saber como vamos aplicar os grandes princípios que não podem deixar de ser aplicados num Estado de direito, mas têm novas dimensões. Estamos a falar de uma administração que já não é tipicamente estatal, mas numa lógica de governance, em que os governos têm sobretudo poderes regulativos e adaptativos, têm de lidar com recursos públicos e privados, têm de lidar com legislação nacional e supranacional. Os problemas concretos que vão surgindo obrigam a uma imaginação muito maior, mas também desafiam as escolas de Direito a aproximarem-se das escolas de Economia e Gestão. E isto vem reforçar uma conclusão a que tenho chegado ultimamente, analisando quem mais facilmente arranja emprego nos dias de hoje: cada vez mais são precisos dois cursos, é preciso o cruzamento dos saberes.
A economia é, hoje, claramente política, como se vê quando figuras de altas instâncias financeiras supranacionais fazem recomendações políticas ao ponto de se mudarem as leis eleitorais, para que governos de minoria como os que hoje temos não voltem a acontecer…
Mas eles também têm de aprender. O que se passou com este Governo é claro. Em termos políticos, o que está na Constituição é que o Presidente da República convida a formar governo um partido tendo em conta os resultados eleitorais, ouvindo os partidos. O que me admirou como constitucionalista foi a profunda ignorância em termos conceptuais e políticos de pessoas muito instruídas em termos de diferença entre legitimidade e legitimação, quando disseram que o Governo do PS não era legítimo. A própria confusão conceptual por pessoas de responsabilidade deu origem a uma acrimónia numas coisas que me parecem óbvias: a legitimação parlamentar é dada pelo Parlamento e pelos partidos que aí têm maioria.
Num primeiro momento ainda não era claro como a soma dos lugares parlamentares se ia transformar numa verdadeira maioria. Não terá sido essa a origem da confusão?
Quando os partidos indicaram ao PS que poderia governar com o seu apoio, tornou-se claro. De qualquer modo, isso deu pretexto a que o Presidente da República Cavaco Silva – cujas presidências não foram tão más como hoje se diz – usasse argumentos pouco válidos para não indigitar logo António Costa como primeiro-ministro, o que depois teve de fazer. Construiu ele uma Constituição material inaceitável. Disse que não daria posse a pessoas que não querem a Europa, mas parece que o Cameron e outros não querem a Europa! Argumentou com a NATO, mas a NATO é uma instituição que se tem reinventado periodicamente. Convocou o próprio tratado que está a ser negociado entre os Estados Unidos e a Europa [TTIP], quando este ainda nem está fechado nem assinado. Aqui é que houve uma mudança de um Presidente, não sei provocada por quê.
Como vê a mudança de perfil do Presidente da República – de Cavaco Silva para Marcelo Rebelo de Sousa?
Tínhamos um Presidente hierático [majestoso, rígido], e hoje temos um Presidente dialógico [dialogante]. A política também se faz assim, com tipos normativos muito diferentes.
O nosso regime semipresidencialista é suficientemente maleável para acomodar esta grande diferença de peso de legitimação do chefe de Estado e do governo, podendo pender mais para o presidencialismo?
Nunca é possível prever, mas é sempre possível a um Presidente, para além das competências constitucionais que tem, ter um estilo mais dinamizador e dar um “empurrão” ao país, como se viu no discurso de Marcelo Rebelo de Sousa no Parlamento Europeu, em Estrasburgo. O regime português é sobretudo parlamentar, porque quem forma governo são os partidos. Mas hoje penso que o sistema já nem é tanto misto parlamentar-presidencial, antes está muito centrado no governo. A europeização acentua os poderes legislativos do governo, que em rigor é quem assume as grandes responsabilidades perante a Europa, mesmo que os diplomas tenham de passar pelo Parlamento. As nossas arquitecturas do regime também mudaram e a Constituição adequa-se com dificuldade a esta nova realidade. É também por aqui que passa a desconstrução da Europa de que fala Viriato Soromenho Marques, em virtude destas contradições do projecto europeu.
Como é que podemos manter o projecto europeu sem união política?
Não é fácil termos uma união política. O projecto de Constituição europeia era uma nova mensagem moderna dentro da Europa, quando estávamos com problemas de alargamento e aprofundamento em que não tínhamos pensado, e para uma Europa que é muito mais politizada do que sabíamos. É curioso terem sido a França e a Holanda os primeiros a rejeitar a ideia. Na realidade, não podia haver uma Constituição europeia, originaria ainda mais fricções do que temos agora.
Então como podemos avançar com este projecto europeu?
Se quisermos ser justos, foi importante haver uma Europa e algumas destas políticas, sobretudo no sector bancário, económico e financeiro, porque diluídos e pressionados por ratings, pelo FMI e esses poderes [fácticos], poderiam criar-se situações dramáticas para muitos países. Hoje não se sabe como vai acabar o referendo na Grã-Bretanha, e eu não gostarei de uma Europa sem o Reino Unido. Nem os investidores, nem a City de Londres, que também não querem [o "Brexit"]. E os EUA, a Índia, a China já deixaram claro que o parceiro comunicacional é a Europa, não é a Inglaterra. Isso demonstra que, em termos externos, a Europa tem uma grande dimensão, não apenas em termos económicos, mas em termos culturais. Mesmo com estas políticas, com xenofobias, com a revitalização da extrema-direita, este nosso espaço civilizacional é incontornável. No plano nacional, a Europa faz parte da nossa estratégia.
Mesmo os partidos que antes defendiam a saída do projecto europeu hoje aceitam-no…
Nos dois partidos antieuropeus há uma dimensão de reflexividade, porque verificaram que as fórmulas emancipatórias não davam emprego, não traziam investimento. Há uma política europeia incontornável.
A nossa Constituição ainda acomoda todas estas novas realidades?
A revisão constitucional não ia resolver nenhuma destas dimensões. Temos de lidar com as heterotopias do dinheiro, das religiões, dos saberes, e tudo isso ultrapassa o Estado e a Constituição. Eu fazia um teste aos meus alunos para avaliar a bondade da Constituição: tentem incorporar o “não” de História do Cerco de Lisboa, do José Saramago [em que o protagonista, revisor de textos, acrescenta o “não” a uma frase e, desta forma, altera o facto histórico do apoio dos cruzados aos portugueses, mudando o rumo da história]. Experimentem a negativa: não temos direito à liberdade, não temos direito à Educação ou à Saúde. E assim verificamos que, nos tópicos principais, a Constituição não é susceptível de grande discussão. Onde ela está a ser muito discutida é nas políticas públicas, como vimos.
Mas a Constituição já não representa o mundo em alguns casos, pois não?
É verdade, sobretudo em termos económicos e financeiros, mas também em termos jurisdicionais, nas relações entre os vários tribunais nacionais e europeus, e também arbitrais. Por outro lado, estão lá muitos aspectos que nunca foram cumpridos, como a regionalização, a redução do número de deputados, o sistema eleitoral com duas listas (voto nominal e voto no partido) – isto já está na Constituição, fruto dos negócios entre o Marcelo e o Guterres e não as concretizámos. Hoje também temos de ter uma perspectiva diferente das regiões autónomas, aprofundar a sua autonomia para garantirmos a soberania na zona económica exclusiva, que é enorme e é de uma riqueza impressionante… Portugal não é um pequeno rectângulo, é um grande território, muito bem posicionado e vai até quase aos EUA.
O que deveríamos então rever na Constituição?
Há várias questões que podiam ser revisitadas, como a indicação dos juízes do Tribunal Constitucional – podia haver alguns nomeados pelo Presidente da República, por exemplo –, mas no essencial ela permanece. Podemos discordamos da sua filosofia política – e podemos retirar aquela Constituição económica que vem do PREC (a reforma agrária, as nacionalizações), que demonstra que não acreditamos na sociedade civil quanto à iniciativa privada, à livre concorrência. Mas no mundo actual há dimensões inovadoras na Constituição que ainda hoje me admiro como houve aquela premonição: os direitos dos trabalhadores, a contratação colectiva que a troika tanto combateu… Mas num mundo de matrizes comunicativas anónimas – os mercados, a comunicação social – todos somos fracos perante elas. No mundo do trabalho, uma pessoa isolada é uma pessoa desarmada, tal como os países. A Constituição era de inspiração marxista, mas hoje tornou-se um elemento muito importante.
Hoje fala-se muito em reformas. De que tipo de reformas precisamos?
Precisamos de uma reflexão sobre a estrutura, não apenas do Estado, mas da organização territorial e das políticas públicas mais reprodutivas de todas: a Educação e a Saúde, que são as que criam efectivamente riqueza. A organização do trabalho que vai ter impacto na Segurança Social – o aumento da idade da reforma atrasa a entrada de jovens no mercado de trabalho, o que tem impacto na produtividade, porque os jovens são mais tecnológicos, por exemplo. E a redução do tempo de trabalho com equivalente redução de salário pode não só gerar mais emprego, como promover a natalidade. A economia social. Não é claro que vamos ter mais dinheiro, mas podemos ter uma sociedade mais equilibrada. As reformas têm de abranger as dimensões da sociedade civil, não vale a pena falar de reformas em abstracto.
Um governo de minoria pode fazer verdadeiras reformas?
Algumas delas precisam de uma legitimação mais reforçada. O problema é que os partidos socialistas estão numa situação deplorável, porque estão a perder as eleições todas na Europa. A solução é o centro, mas aquilo a que estamos a assistir não é saudável, porque a social-democracia está a desaparecer.
A verdade é que os partidos socialistas não estão a conseguir formar governos ao centro, têm de procurar apoios à esquerda ou mais à direita…
Por isso os novos movimentos falam em democracia somativa, aquela em que movimentos que não aceitavam formar ou apoiar governos agora o fazem. É o que se chama "a terceira modernidade". Falamos em movimentos já com alguma articulação e muita competência – veja-se o Bloco de Esquerda, que fez uma campanha eleitoral muito boa. Chegaram à conclusão de que a política tem positividade e com positividade tem de ser exercida. Não é com dialéctica e negatividade. Não chega dizer que não é a nossa política, não queremos entrar. E eles só agora se deram conta disso.