O espetro
Desde há anos vivemos o regresso da parafernália anticomunista como no tempo de Salazar.
Mas como é que já chegámos a Estaline? Como é que da decisão do Governo em rever o financiamento de colégios privados chegámos ao patético slogan do cartaz da JSD do "Isto Stalin(do), está!", no qual Mário Nogueira, o extraordinariamente incómodo secretário-geral da Fenprof, é retratado como um Estaline que manipula o ministro da Educação? Depois da tempestade desencadeada contra o "mau gosto" e do caráter "ofensivo" do cartaz do Bloco com os "dois pais de Jesus", dá para rir.
Até o insuspeito Francisco Assis, que gosta de Nogueira quase tanto quanto as direitas gostam, considera que a JSD adotou "formas de linguagem de caráter notoriamente ofensivo e suscetíveis de concorrer para a radicalização desnecessária do confronto político", ainda que ache que o sindicalista "sempre se caraterizou pela adoção de uma linguagem excessiva" – e logo de seguida sintetiza como "fanatismo corporativo-ideológico" o mandato de um dos sindicalistas com maior capacidade de representação no seu setor laboral, "que só tem paralelo no comportamento dos estivadores do porto de Lisboa" (Assis, PÚBLICO, 26.5.2016). Na pena de um homem que tem batalhado tão intensamente contra o "populismo", despachar desta forma tão preconceituosa o trabalho sindical também não está mal.
"Fanático" para Assis, Nogueira é para a JSD um "figurão da extrema-esquerda" ou "o comunista que há muitos anos que não sabe o que é dar aulas" (comunicados de 23 e 25.5.2016). "Comunista" é a política do Ministério da Educação, que pretende impor a "nacionalização comunista e socialista da escola portuguesa", como escreve o ex-secretário de Estado Feliciano B. Duarte, do PSD (PÚBLICO, 24.5.2016). Há dias, Helena Matos dava um ar da sua graça nesta onda de bolchevização dos ministros socialistas e falava do “soviete da 5 de Outubro" e da próxima "[instalação] de um comissariado na Praça de Londres", isto é, no Ministério do Trabalho. "É sempre a crescer, camaradas” (Observador, 18.5.2016). Há meses, Vasco P. Valente, sempre profético (o artigo intitulava-se Antes do dilúvio, PÚBLICO, 16.10.2015), avisava-nos de que "um Governo como o que [António Costa] se prepara para fabricar com o PCP e o Bloco é impossível em democracia e só se aguenta, e mal, em ditadura", coisa logo reiterada por António Barreto (RTP3, 21.10.2015).
Definitivamente, a "linguagem excessiva" está de moda! A mesma de que se queixava a direita (e Assis, que se chocou com os protestos que calaram intervenções públicas de ministros como Miguel Relvas) que repetidamente acusou as esquerdas e os movimentos sociais que se levantaram contra o governo Passos/Portas de degradar a qualidade do debate político ao longo destes anos de transe em que a nossa sociedade se viu submersa – e de que ainda não saímos. Agora, contudo, o fenómeno não é só o da inflação semântica (ou simplesmente do disparate). Já sabíamos que sempre que as ruas se enchem de manifestantes em protesto e que a capacidade de resistência contraria processos de perda de direitos (veja-se a França), as direitas gritam "Vem aí o comunismo!"
Desde há anos vivemos o regresso da parafernália anticomunista com a mesma intenção demonizadora com que a usava, por exemplo, Salazar contra as oposições democráticas. Neste registo, basta que o ministro da Educação concorde com "o comunista" e "fanático" Mário Nogueira para se perceber que foi contaminado pelo comunismo. O pressuposto aqui é tudo: para se poder suscitar toda a rejeição que aqui está implícita, subscreve-se a velha tese de que o comunismo não é simplesmente uma ideologia que informa um movimento político; ele é, como dizia Salazar em 1943, "o maior problema humano de todos os tempos". É por isso que as direitas latinoamericanas dizem que Dilma e Lula são comunistas, que Chávez=Castro=Estaline, comunista foi o kirschnerismo disfarçado de peronismo, e mais a Norte, comunistas são Obama e Bernie Sanders! Em Itália, onde o maior PC do Ocidente se dissolveu em 1989-91, Berlusconi continuou a descobrir comunistas escondidos dentro de todos os que haviam deixado de o ser, mas também em "toda a cultura de esquerda que é neocomunista" (termo partilhado por Assis). Os mesmos que dizem que, para efeitos da construção do futuro, o comunismo morreu, são aqueles que agora o veem por todo o lado! História, filosofia política e programa, pouco interessam; mas interessa o espetro que, se já não planeia pela Europa, como diziam Marx e Engels em 1848, não sai destas cabeças!
Um detalhe, contudo, chamou a atenção de Francisco Assis: Mário Nogueira repudiou a comparação com Estaline por ter sido este "um sujeito criminoso". Para Assis, "Nogueira rompeu com a ortodoxia comunista, ofendeu décadas de idolatria stalinista, pôs em causa a própria identidade do PCP". Claro que, a alguém que está convencido de que Estaline é "idolatrado" no PCP (organização com a qual o partido de Assis assinou um acordo de governo...) é inútil pedir-lhe que leia o muito que o PCP escreveu desde 1957 sobre Estaline, a URSS e os "métodos de comando burocrático, de abuso do poder, de violação da legalidade, de privilégios, de corrupção" do sistema soviético (XIII Congresso, maio 1990).
Mas não é legítimo questionar os comunistas portugueses sobre a memória do estalinismo e a sua relação com ela? Claro que é! – mas era bom que se não fingisse que o Gulag foi construído na Soeiro Pereira Gomes e que Katyn foi coisa de Cunhal... É tão legítimo quanto questionar quem tanto reitera o elogio da "grande democracia americana" na esfera pública portuguesa, nos partidos da direita e fora deles, sobre os 2,5 milhões de mortos da guerra do Vietname, o genocídio dos vários povos ameríndios ao longo dos sécs. XIX e XX ou a bomba de Hiroshima.
Quando é que ouvimos a direção do PSD a falar da escravatura com que tão bem conviveu durante 90 anos com a Constituição dos EUA tão apreciada pela direita liberal? Ou quando é que se lembram de perguntar a Assunção Cristas sobre o apartheid a que, quase dois séculos passados sobre a criação da louvada democracia norteamericana, estavam submetidos todos os afroamericanos dos Estados do Sul? E quando é que os amantes de Churchill, o non plus ultra das direitas desde 1945, se pronunciam sobre trezentos anos de crimes do colonialismo britânico? E não seria razoável pedir ao PS que se pronunciassem sobre a guerra da Argélia e o papel que governos franceses dirigidos por socialistas tiveram nos massacres e na tortura perpetrados pelos franceses?
Estas são questões irrazoáveis por nada terem a ver diretamente com a realidade na qual operam estes partidos? Ok, perguntemos, então, ao líder da JSD o que acha ele da guerra colonial, do Tarrafal, da PIDE... É mesmo esta a discussão que ele quer?
Estamos sempre a voltar à manipulação política da História. Numa batalha de cromos históricos, feita de ignorância sem fundo e de uma ligeireza alarve.