Para quando o Mês da História Negra?

É necessário dar a conhecer a secular História Negra Portuguesa, as formas de sujeição, mas também as contribuições negro-africanas para a sociedade portuguesa.

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Manifestação no Porto, a 1 de Agosto de 2020, após o homicídio de Bruno Candé Paulo Pimenta

Com designações distintas, graus variáveis de reconhecimento institucional e com um calendário diverso, o Mês da História Negra é uma via pela qual coletivos negros, escolas e outras instituições em todo o mundo têm procurado romper com o racismo e o eurocentrismo nos seus contextos. Nasceu pela mão do historiador negro Carter G. Woodson e da Association for the Study of Negro Life and History que, em 1926, organizavam a Semana da História Negra e que escolheriam fevereiro por ser o mês de nascimento de Frederick Douglass e Abraham Lincoln, figuras incontornáveis do abolicionismo nos EUA. Na década de 1970, a iniciativa seria alargada para um mês e, a pouco e pouco, replicada em diferentes partes do mundo. Hoje é crescente o número de países que o celebram, seja em fevereiro (i.e., EUA, 1970; Canadá, 1995; Berlim/Alemanha, 1990), outubro (i.e., Reino Unido, 1987; Irlanda, 2010; Holanda, 2015), novembro (i.e., Brasil, 1970) ou noutros momentos do ano.

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David from Washington, DC, CC BY 2.0 <https://creativecommons.org/licenses/by/2.0>, via Wikimedia Commons

Em Espanha, vários coletivos têm vindo a assinalar fevereiro como o Mês da História Negra, mas não há ainda um reconhecimento oficial da data. Alguns dos intelectuais afro-espanhóis, como Desirée Bela-Lobedde e Antumi Toasijé, reconhecem que, apesar de necessária, esta medida é insuficiente para resolver o eurocentrismo da História de Espanha. Em França, intelectuais negros, como Louis-Georges Tin e Maboula Soumahoro, e organizações como os Indigènes de la République e o CRAN - Conseil Représentatif des Associations Noires há muito que têm procurado que a iniciativa seja reconhecida, mas os obstáculos são vários. Por um lado, a matriz republicana prefere olhar indistintamente os cidadãos e acusa esses movimentos de serem criadores de divisões desnecessárias e perigosas; por outro, uma recusa em reconhecer a categoria “raça”, mesmo que entendida como construção político-social.

Por cá, excetuando uma ou outra iniciativa localizada, o Mês da História Negra está ausente da programação das escolas e das instituições da cultura. O mais parecido que temos tido, mas que não é a mesma coisa, decorre normalmente a propósito do Dia Internacional para a Eliminação da Discriminação Racial (21 de Março, instituído pela ONU em memória do massacre de Shaperville, em 1960 na África do Sul) ou do Dia de África (dia 25 de Maio, também proclamado pela ONU para celebrar o dia da criação da Organização de Unidade Africana, em 1963, hoje União Africana). Em torno desses dias, com durações variáveis, Núcleos de Estudantes Africanos, associações e coletivos ligados à imigração africana e ao antirracismo, assim como algumas escolas em territórios com elevada presença de população negra, dinamizam programas de atividades lúdico-recreativas, de debate e reflexão.

Não será por acaso que o Dia de África é mais procurado, talvez tanto como os dias das independências (Cabo-Verde e S. Tomé e Príncipe, a 5 e 11 de julho, respetivamente; Angola, a 11 de novembro; Guiné-Bissau, 24 de setembro; Moçambique, a 25 de junho). Ao contrário do Brasil e dos EUA, a histórica colonial portuguesa em África estendeu-se até aos anos 1970 e uma parte importante da população negra em Portugal tem laços objetivos com África. Portanto, aquelas datas têm um significado efetivo na vida e na memória coletiva das comunidades negras, têm uma capacidade agregadora que o 21 de Março, por exemplo, não tem. Contudo, em ambas as datas, as narrativas tendem ora a não dar destaque à diáspora negro-africana, ora a tirar de cena o racismo antinegro na sociedade portuguesa.

Não seriam mais pertinentes efemérides recentes, do pós-25 de Abril, ocorridas especificamente em Portugal e mais dialogantes com a vida aqui vivida? Uma hipótese remete para a data do assassinato de Alcindo Monteiro por neonazis, que não ao acaso coincide com 10 de Junho, atual Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, o velho Dia da Raça? Ou 25 de julho, dia em que Bruno Candé foi assassinado pelas “armas do Ultramar” de Evaristo Martinho? Ou, com uma tónica maior na resistência, o 21 de janeiro, data da manifestação organizada e maioritariamente composta por jovens negros que, fora das estruturas formais, subiram a Avenida da Liberdade para manifestar o seu repúdio face à violência policial no Bairro da Jamaica? Ou ainda, 6 de outubro, data em que pela primeira vez são eleitas três deputadas negras – Beatriz Gomes Dias, Joacine Katar Moreira e Romualda Fernandes – para a Assembleia da República?

Outra questão é o como deveria a História Negra ser abordada para que não seja uma réplica dos múltiplos eventos que as escolas já realizam segundo um paradigma intercultural acrítico. Terá o Ministério da Educação feito algum levantamento sobre as práticas das escolas a este nível e preparado materiais de apoio para que as possam melhorar? Colocar cachupa no menu da cantina, fazer passagens de modelos com tecidos “africanos”, assistir a concertos de “música do mundo”, repetir as ladainhas da “lusofonia”, da excecionalidade do colonialismo português e de que “não existem cores”, está muito aquém, é, aliás, o inverso, do que deveria ser um Mês da História Negra.

É necessário dar a conhecer a secular História Negra Portuguesa, as formas de sujeição, mas também as contribuições negro-africanas para a sociedade portuguesa e os espaços de internacionalização da sua resistência política, como o Pan-africanismo e o Black Lives Matter/Vidas Negras Importam. Urge saber fazer uma discussão aberta sobre a participação de Portugal no tráfico transatlântico, sobre o trabalho forçado e o Estatuto do Indigenato, assim como sobre as desigualdades e discriminações vividas pelas comunidades negras hoje. É fundamental discutir conceitos como branquitude, colonialidade, racismo estrutural e institucional. E é preciso fazê-lo com uma verdadeira abertura da escola à comunidade, resistindo a lógicas extrativistas, apoiando atividades que as organizações da sociedade civil já realizam, deixando-as ser condutoras e protagonistas do processo, numa lógica de representatividade não-tokenista.

Em sociedades, como a portuguesa, com uma história escravocrata e colonial tão profunda e cujas consequências precisamos reparar, uma iniciativa como o Mês da História Negra é um passo mínimo e não é um fim em si mesmo, é um meio, para alcançar um objetivo maior. É preciso dar cada passo que ainda não demos, mesmo que, por vezes, possam parecer pequenos, perante a imensidão do que falta ainda fazer.

A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico

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