Le Corbusier e a direita radical e revolucionária
Le Corbusier sempre teve o cuidado de não se comprometer explicitamente no que respeita as suas posições políticas.
Aquilo que deveria representar o reconhecimento definitivo e a consagração de Le Corbusier no seu papel determinante no Urbanismo do Séc. XX (exposição organizada pelo Centro Pompidou, Le Corbusier - Mesures de l'homme, Abril-Agosto 2015), transformou-se no pesadelo definitivo para os seus organizadores.
Oportunamente, três livros foram publicados na ocasião: Le Corbusier, un fascisme français, de Xavier de Jarcy; Le Corbusier, une froide vision du monde, de Marc Perelman; e Un Corbusier, de François Chaslin.
As intensamente polémicas e incontornáveis revelações desenvolvidas por estas obras sobre o percurso ideológico de Le Corbusier, só surpreenderam o grande público, pois os estudiosos da Historiografia desenvolvida nos últimos 20 anos, especializada na génese do fascismo entre os finais do Séc. XIX e os primeiros quarenta anos do Séc. XX, viram apenas confirmado aquilo que já sabiam.
Não se trata apenas da estadia de Le Corbusier durante 18 meses em Vichy, tentando servir a “Revolution Nationale” de Pétain, acompanhando o seu amigo Hubert Lagardelle, Ministro do Trabalho no mesmo regime. Este período constitui apenas o momento culminante de todo um processo de contactos e participações com personagens como o Doutor de Winter, Georges Valois, Phlippe Lamour, Hubert Lagardelle, com particularidades, interesses e especialismos diversos, mas todos unidos pelo ideal de uma Revolução Nacional Socialista-Fascista, culturalmente e economicamente regeneradora e modernizante, vinda do Sindicalismo Revolucionário transformado em Nacional Sindicalismo na herança do pensamento de Proudhon e Georges Sorel.
Não se trata, portanto, de declarar definitivamente, com o dedo acusador, Le Corbusier como fascista, mas tentar compreender, na perspectiva da História das Ideias, todo um processo de ambiguidades e aparentes paradoxos que tem sido estudado e revelado nos últimos 20 anos.
Neste aspecto, Le Corbusier era um francês do Interbellum, como muitos outros, movimentando-se num conglomerado ideológico inconformista e proto-pré-fascista que A. James Gregor definiu como uma cabeça de Janus, e Zeev Sternhell como uma síntese “nem de Direita, nem de Esquerda”.
A. James Gregor trata nomeadamente as dualidades e ambiguidades das “origens” marxistas do fascismo como uma cabeça de Janus, fascismo que Gregor considera ideologicamente como uma “heresia marxista” ou melhor dito, uma heresia desenvolvida por ex-marxistas decepcionados e descrentes da coerência ideológica e eficácia prática do marxismo clássico e ortodoxo, e dirigidos a uma revolução não menos radical na sua fase inicial, através da evolução e transformação do Sindicalismo Revolucionário e Anarco Sindicalismo em Nacional Sindicalismo (The Faces of Janus: Marxism and Fascism in the Twentieth Century, 2000 ) .
Cabeça de Janus esta, na qual uma das faces tem estado aparentemente distinta e isolada, mas afinal apenas escondida na sombra, privada da luz da análise e compreensão histórica, e que lentamente, começa a ser iluminada pela evolução da Historiografia através do trabalho de diversos Historiadores.
O título sintético e altamente revelador “Nem direita, nem esquerda” (Ni droite ni gauche, Paris, 1983), é escolhido por Zeev Sternhell para ilustrar a sua tese construída ao longo dos anos em diversas publicações, na qual ele defende que em França, antes da Primeira Guerra Mundial, a essência ideológica do fascismo já existia como um corpo coerente, mas era um fenómeno para o qual um nome ainda não tinha sido inventado. Esta tese provocou também larga polémica (António Costa Pinto, Fascist Ideology Revisited: Zeev Sternhell and His Critics, European History Quarterly, 1986).
O que caracterizava o pré-fascismo de Sorel, Gustav le Bon, Henri de Man e dos Neo-Socialistas Déat e Doriot (todos eles vindos do Marxismo Clássico mas agora em revolta dissidente) era uma recusa da dimensão exclusivamente materialista (materialismo dialéctico) historicista/mecanicista do marxismo, prisioneiro do conceito de luta de classes e da final ditadura do proletariado.
Na sua alergia comum à democracia liberal e parlamentar, vista por eles como prisioneira de um capitalismo global liderado por elites corruptas ligadas à banca internacional e um híper egoísmo/individualismo materialista explorador do proletariado, estes grupos, em nome de um inconformismo radical, começam a criticar o marxismo clássico e a considerá-lo inefectivo nos seus ideais revolucionários.
Tudo isto tocado, com maior ou menor intensidade e gravidade, por um anti-semitismo latente ou militante, muitas vezes não identificável com o obsessivo racismo biológico do Nazismo e PanGermanismo, mas de forma não menos grave (tendo em conta os posteriores desenvolvimentos a partir dos anos 30 e durante a Segunda Guerra Mundial, e a atitude voluntária de perseguição e entrega aos Alemães da Zona Ocupada por Laval e Pétain de milhares de Judeus pelo Governo de Vichy), baseado no conceito do Judeu como “deraciné” e híper individualizado, símbolo da especulação financeira e bolsista, explorador do trabalho alheio, fora da sociedade, e portanto não integrável no tecido orgânico do “povo” original com raízes de sangue e terra.
Já antes da Primeira Guerra Mundial, portanto, Sorel, profundamente conhecedor da vida sindical, tinha consolidado a sua teoria de revisão marxista da revolução, substituindo o “motor” da luta de classes pelo empolgamento inspirador do mito, sintetizador, aglutinador e inspirador da revolução das massas sindicalizadas.
Sorel recusa também o carácter abstracto internacionalista da revolução marxista onde o proletariado dominará de forma universal, submetendo as outras classes, e transforma essa mesma revolução em revolução orgânica nacionalista, integradora de todas as classes nos seus talentos e características, mas submetidas no seu empreendedorismo à ideia da Nação.
O ímpeto e a vitalidade da revolução desencadeada pelo imaginário dinâmico da greve geral iria acordar e sacudir a burguesia do seu torpor capitalista e iria pôr o seu empreendedorismo ao serviço da Nação. Aqui chegámos à ideia do Povo, constituído por diversas classes e talentos, mas unidos pelo Estado Corporativo ao serviço da Nação, onde o Capitalismo e o empreendedorismo empresarial não são abolidos, mas são “moralizados” pela sua libertação do seu capitalismo internacionalista especulativo e globalizado, irão ser postos ao serviço de todos e da Nação.
Sem abdicar da sua dimensão social militante através do Sindicalismo Revolucionário, Sorel estabelece contactos e forma uma aliança com a Action Française de Charles Maurras, isto, numa fase anterior à primeira Guerra Mundial, em que a Action Française demonstrava ainda preocupações sociais. Depois da guerra, estas preocupações desaparecem e o carácter meramente conservador da Action Française levam a um distanciamento de Sorel. O mesmo acontece acentuadamente e posteriormente com Georges Valois.
As trincheiras da Primeira Guerra Mundial com todos os seus horrores e heroísmos trouxeram também uma nova dimensão a este processo de mito dinâmico e revolucionário: a união dos veteranos e produtores.
E, aqui, chegámos à relação entre o fascismo e a ideia do culto da violência (Sorel, Réflexions sur la violence, 1908), como acção directa e libertadora e também à ideia da revolução ligada à modernização e consequentemente ao Modernismo.
Embora o Futurismo, o seu Manifesto (Marinetti) e a sua relação com Mussolini sejam reconhecidos nas suas influências culturais e artísticas, a historiografia desenvolvida a seguir à Segunda Guerra Mundial teve grandes dificuldades, ou simplesmente negou, qualquer possibilidade de relação do fascismo com o modernismo.
O Modernismo encontrava-se exclusivamente do lado bom, aceitável, e ligado com a faceta progressiva vinda do Iluminismo.
Casos como a relação dos arquitectos racionalistas Italianos (Terragni) com o fascismo ilustrada na sua intensa participação em 1932 na Mostra della Rivoluzione fascista ou da construção da Casa del Fascio (Como) terminada em 1936 em pura linguagem Corbusiana, eram motivo de grande embaraço e impossíveis de “encaixar” e inserir na historiografia “clássica” da época. (Assim como, de resto, em Portugal, o percurso de toda uma geração modernista na sua relação com António Ferro culminada na participação em massa na Exposição do Mundo Português, merece ser “revisitada”).
Foi preciso esperar por historiadores como Diane Ghirardo (Politics of a Masterpiece: The Vicenda of the Decoration of the Façade of the Casa del Fascio, Como, 1936-39, The Art Bulletin Volume 62, Issue 3, 1980) e muito mais recentemente de forma muito completa, Roger Griffin (Modernism and Fascism: The Sense of a Beginning under Mussolini and Hitler, 2007) e, ligado especificamente à França e também ao caso de Corbusier, Mark Antliff (Avant-Garde Fascism: The Mobilization of Myth, Art, and Culture in France, 1909-1939, 2007), para que a “outra face de Janus” na perspectiva das Artes e Arquitectura, fosse mais nitidamente iluminada.
Em 1925, Georges Valois, vindo do Anarco-Sindicalismo-Revolucionário funda o Le Faisceau (o primeiro partido fascista oficial francês). Valois, que considerava o marxismo como um “irmão-inimigo”, teve um percurso ilustrativo das ambivalências e complicadas relações do fascismo com o marxismo, e da direita revolucionária com a esquerda revolucionária.
Em 1911, Valois desenvolve como membro da ala esquerdista da Action Française o “Cercle Proudhon”. Em 1925, o mesmo ano da fundação do Le Faisceau, Valois cria o jornal Nouveau Siécle que o põe em confronto com Maurras como reacção à militância esquerdista de Valois.
Valois perde também o apoio financeiro indispensável de alguns magnatas financeiros do Redressement Français, movimento patriótico de magnatas industriais, antiparlamentar e apologista da modernização tecnocrática e industrial francesa.
Em 1928, Le Faisceau, tal como tinha sido fundado por Valois, desaparece através da expulsão de Valois do mesmo, visto como demasiado esquerdista.
Valois desenvolve um percurso inconformista de comunismo libertário. Durante a guerra, entra na Resistência, é preso e morre num campo de concentração. (1945, Bergen-Belsen)
Valois é extremamente importante na sua relação com Le Corbusier. Até 1929, o ano do famoso “crash” da bolsa em Wall Street, Le Corbusier foi um entusiasta do taylorismo, doutrina desenvolvida por Henry Ford que associava métodos de produção e estandardização industrial ao progresso socio-económico. Ele partilhava este entusiasmo com Phlippe Lamour e Valois, apologistas da modernização e dimensão artística do Modernismo.
Le Corbusier tinha intensos contactos com o, mais tarde seu vizinho, doutor de Winter, biologista, higienista, apologista da eugenia com componentes profundamente anti-semitas. De Winter foi membro do Le Faisceau e acompanha Philippe Lamour a partir de 1928 no novo Parti Fasciste Révolutionnaire nascido da ruptura com Valois. Ele é um animador e colaborador intenso no “L' Esprit Nouveau” de Le Corbusier e nas publicações Plans, Prélude e L’Homme Réel, para as quais Le Corbusier também contribui. De Winter escreve ainda o prefácio das Oeuvres complètes de Le Corbusier (1934-1938 ).
Em Janeiro de 1927, a fotografia de Le Corbusier é publicada no Nouveau Siécle, juntamente com comentários na mesma edição de De Winter apresentando Le Corbusier como um dos principais animadores deste órgão oficial do partido Le Faisceau.
A 1 de Maio de 1927, o Nouveau Siècle dedica uma página inteira ao Plan Voisin (1922) de Le Corbusier. Três semanas mais tarde, Le Corbusier faz uma apresentação de slides na nova sede do Faisceau, consagrando assim a sua relação e o seu estatuto com o partido.
Georges Valois afirma, entusiasmado: “Foi com uma intenção muito precisa que convidámos Le Corbusier para dar uma conferência. Ignoro completamente quais são as ideias políticas de Le Corbusier. O que sei é que a sua obra exprime magnificamente, através de poderosas imagens, as mais profundas tendências do Le Faisceau. Os nossos camaradas viram com surpresa os seus mais profundos pensamentos materializados na Cidade do Futuro. Estes desenhos representam e exprimem os pensamentos mais profundos do fascismo, da revolução fascista” (resumo traduzido das passagens completas em Simone Brott, Le Corbusier and the anarcho-syndicalist city, 2014).
Ora, Le Corbusier através do seu percurso, sempre teve o cuidado de não se comprometer explicitamente no que respeita as suas posições políticas. Mesmo na sua correspondência particular com a sua mãe encontra-se a mesma precaução controlada, embora tenham havido recentemente revelações de algumas passagens mais comprometedoras. (“L’argent, les Juifs (en partie responsables), la franc-maçonnerie, tout subira la loi juste. Ces forteresses honteuses seront démantelées. Elles dominaient tout.” – “Nous sommes entre les mains d’un vainqueur et son attitude pourrait être écrasante. Si le marché est sincère, Hitler peut couronner sa vie par une œuvre grandiose: l’aménagement de l’Europe.”)
É famosa a sua nota na última página do Urbanisme quando da sua apologia pelo autoritarismo visionário de Luis XIV, que declarava: “Isto não é uma declaração da Action Française.”
Tudo isto integra-se na versão oficial de muitos arquitectos e historiadores que defendem que Le Corbusier, à parte do seu nítido oportunismo (nítido na sua relação com o mecenato de grandes industriais e financeiros em todos os seus projectos), era um “naif” utilizável e manipulável por ideólogos e políticos. Isto permitiu-lhe a seguir à guerra, de neutralizar a importância do seu investimento/estadia em Vichy, e de dar resposta ao interesse demonstrado por De Gaulle.
Voltando agora à relação de Le Corbusier com Valois e Le Faisceau. Simone Brott (Le Corbusier and the anarcho-syndicalist city, 2014) desenvolveu uma investigação e construiu uma tese à volta destas questões e formula conclusões surpreendentes. Segundo ela, não se trata apenas de uma influência mútua externa entre Valois e Le Corbusier. Quando Valois utiliza a expressão “imagens” e “Cidade do Futuro”, ele fá-lo na linha desenvolvida por Sorel.
Sorel na sua obra Réflexions sur la violence (1908) tinha-se referido ao “mito fascista como um sistema de imagens que revoluciona a história”, e ainda afirmado “as imagens ou os mitos não constituem descrições de coisas, mas são expressões de uma vontade de acção.”
Brott desenvolve a ideia de que o encontro entre Valois e Le Corbusier foi um encontro entre duas manifestações das mesmas ideias, que tinham evoluído em formas distintas, mas que agora se encontravam e se reconheciam mutuamente com entusiasmo.
Esta é uma conclusão antagónica à versão oficial da historiografia, que vê a visão arquitectónica e urbanista de Le Corbusier numa perspectiva da revolução progressiva do socialismo utópico, na herança iluminista de Saint-Simon e Charles Fourier.
A imagem de Le Corbusier da cidade futura tecnocrática, higiénica e modernizante era a concretização numa imagem arquitectónica concreta, na linha daquilo a que Sorel chamava a “Cité Française” como projecto da Sociedade futura, da Revolução Fascista.
Historiador de Arquitectura
Correcção: no 11.º parágrafo, onde estava, por lapso, "vista por ele," passou a estar, correctamente, "vista por eles"