"Dinheiros públicos, vícios privados"

Instrumento poderoso de emancipação pessoal e social, a escola pública foi sempre detestada pelas direitas.

Quando o Ministério da Educação se propôs racionalizar o uso de dinheiros públicos, a direita, teoricamente tão sensível a este argumento, quis abrir uma guerra ideológica e religiosa a propósito do financiamento público do ensino privado. Foi o líder parlamentar do PSD que decidiu colocar a questão em termos de "ataque não assumido à Igreja Católica" - preocupação que, diga-se de passagem, fica bem sempre na boca de um maçon como Luís Montenegro. A Conferência Episcopal, que raramente se pauta pela discreção em questões que economicamente a afetem, veio logo dizer que "a Igreja não se pode calar (...). É uma questão de respeito pela liberdade de todos, pela democracia, pelo bem comum" (Pe. Manuel Barbosa, in Expresso, 7.5.2016), deixando-se ficar na companhia do grupo GPS, que detém "um império de uma dezena de colégios financiados pelo Estado", cujas práticas ilegais e indícios de corrupção foram revelados na já famosa reportagem de Ana Leal, intitulada "Dinheiros públicos, vícios privados" (TVI, 3.12.2012), envolvendo um exsecretário de Estado e uma exchefe de gabinete da ministra da Educação do governo Santana Lopes e vários dirigentes do PSD e do PS.

A direita decidiu nos últimos anos, sobretudo no governo Passos, associar o seu neoliberalismo económico ao confessionalismo nas políticas sociais (Mota Soares foi o campeão da transferência de equipamento e de financiamento público para as Misericórdias e as IPSS) e educativas, com Crato a encher a boca com a "liberdade de escolha" das famílias entre escolas públicas sujeitas a dieta austeritária de recursos e escolas privadas beneficiando de "contratos de associação" mesmo quando, como já percebemos todos, eles se não justificam por beneficiarem entidades comerciais sem qualquer papel supletivo de uma oferta pública inexistente. Fê-lo recorrendo à retórica de que o "serviço público" pode ser assegurado por privados, desde que financiados generosamente pelo Estado! A direita é, nestas coisas, muito engraçada: grita esganiçada (como diria Arroja) contra a "subsidiodependência" daqueles que descreve como as cigarras da cultura e das prestações sociais, mas a ganga ultraliberal rompe-se-lhe toda se se toca nas rendas das PPPs ou dos colégios que o Estado, habitualmente quando ela deste se apropria, se obrigou a financiar!

Altifalante habitual deste universo de pensamento, é tudo menos surpreendente que César das Neves inverta todo o raciocínio e se queixe da "atitude corporativa, clientelar e burocrática que há séculos impõe o atraso nacional" que diz detetar nos professores do ensino público, que "põem o seu interesse particular no lugar do bem público que deveriam promover" (DN, 7.4.2016). Claro, os professores e não os interesses "clientelares" dos proprietários de colégios que beneficiam injustificadamente de dinheiros públicos.

Nestas como noutras questões, esta nova direita liberalona tende a ter memória histórica de mosca, esquecendo-se que foram os liberais que há 200 anos fundaram a escola pública, que a instituíram como formadora da cidadania e que a tornaram de frequência obrigatória. A Igreja, apostada na batalha pela "conquista das almas", abriu então a guerra à escola pública, pretendendo-se colocar na posição central da oferta educativa, exigindo que o Estado a financiasse, diretamente pela transferência de recursos e indiretamente pela contenção na oferta pública. Um século depois da legislação de Passos Manuel que instituía a obrigatoriedade e a universalidade da "instrução primária", o deputado salazarista Diniz da Fonseca dizia, em 1938, que "a escola oficial deve ter um carácter supletório, existindo somente onde faltarem as particulares suficientes em quantidade e idoneidade" (cit. in M.F. Mónica, Educação e Sociedade no Portugal de Salazar, 1978).

Instrumento poderoso de emancipação pessoal e social, a escola pública foi sempre detestada pelas direitas (os conservadores, os fascistas, os cristãos integristas, os judeus ortodoxos, os islamistas) porque nela vigora a laicidade e/ou a pluralidade religiosa e cultural, porque nela se contraria a cultura da discriminação e da violência, porque quem nela trabalha, em nome do bem público e não de um interesse comercial e/ou de uma visão confessional do mundo, deve ser selecionado com independência e rigor e não pode ser escolhido de forma arbitrária, porque nela se promove a participação e porque se obriga a um sistema de governo representativo e democrático.

É esta a escola que os setores mais retrógados do catolicismo dizem ser um instrumento do "totalitarismo laicista". Anos de degradação das condições de trabalho e acolhimento (redução drástica da rede escolar, esquemas cada vez mais centralizados de gestão com interferência política das autarquias, cortes orçamentais, aumento da rácio professor/aluno e redução brutal de pessoal) não conseguiram ainda avançar com o projeto do que poderíamos chamar a brasilianização da escola: perda de prestígio e qualidade da escola pública, relegada à função de depósito dos filhos dos subordinados que nela devem aprender a conformar-se com a desigualdade de oportunidades; consolidação do espaço privilegiado da escola privada, centro de reprodução das mesmas elites que, mantendo-se no poder, reproduzem esse mesmo privilégio.

É por ser ainda das instituições mais respeitadas e prezadas na sociedade portuguesa que não surpreende que Rui Ramos compare "as escolas públicas" de hoje com "a soberania de Álvaro Cunhal nas terras ocupadas do Alentejo" com quem, "em 1976, o PS também conviveu". Para quem duvida de que a história se manipula para legitimar uma determinada explicação do presente, Rui Ramos vê na política do atual governo uma velha tendência socialista para "o reconhecimento de feudos ao PCP": "o programa é claro: submeter [a educação, os transportes e a saúde] aos sindicatos, e mantê-los ou torná-los monopólios. Na educação, onde Mário Nogueira governa com o inexplicável pseudónimo de Tiago Brandão Rodrigues, já se trata de desmantelar as escolas privadas com contrato de associação" (Observador, 10.5.2016).

A alucinação, já sabemos, é livre. Nós só precisamos de a saber identificar.

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A propósito de Rui Ramos, João Miguel Tavares quis há dias (PÚBLICO, 3.5.2016) agredir Fernando Rosas usando-me a mim como pretexto. De tanto não ter lido o que Ramos escreveu, e menos ainda os meus artigos que em 2012 deram origem a um debate em que ele não participou, Tavares retoma a velha ladainha de que eu teria "deturpa[do] de forma escabrosa e escandalosa vários excertos da obra" de Ramos (a contenção nos adjetivos é um dos seus fortes) numa argumentação "estúpida" (onde é que eu já li isto?) e "delirante". Reconhecido tudólogo, que de tudo e de nada escreve com a mesma ligeireza, Tavares julgava que "o assunto" estava enterrado. E, no que diz respeito à relevância e à competência das suas opiniões, está mesmo. Enterrado.

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