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António Guterres – um militante social...

Sendo alguém com qualidades intelectuais inequívocas, não é um teórico ou um ensaísta. É um homem com grande sentido da prática e do concreto – daí a sua paixão pela política. O que mais me continua a fascinar nele é a paixão e o conhecimento aprofundados da História do mundo.

António Guterres destacou-se desde a juventude pelas suas excecionais qualidades de inteligência, de entrega, de generosidade e de trabalho. Todos os que o conhecem e com ele privam não têm dúvidas em reconhecê-lo, de um modo natural, como quem melhor se prepara e como quem se destaca entre os melhores.

Foi sempre assim… Nas prestações públicas a que se submeteu na candidatura a secretário-geral das Nações Unidas ficaram patentes essas qualidades pessoais – que permitiram o sucesso diplomático. Os que o conheciam menos bem ficaram impressionados desde o primeiro momento – e tal deve-se a uma capacidade única de estudar os dossiês e de se preparar para os problemas que tem de enfrentar. Nas várias décadas em que o conheço, que com ele privei e trabalhei diretamente, nunca o vi facilitar ou baixar os braços. Se havia algo para fazer, havia que ter a preparação adequada, nos mais ínfimos pormenores. É o mais temível leitor e intérprete de estatísticas que conheço. Os pormenores não lhe escapam, alguns aspetos que à primeira vista podem passar a outros com ele não passam…

Num perfil de António Guterres cabe em primeiro lugar a exigência e o rigor. Mas o que mais me continua a fascinar nele é a paixão e o conhecimento aprofundados da História do mundo.

Sou testemunha de muitas centenas de horas a debater, como ninguém, desde a Guerra do Peloponeso, ou de como os atenienses não quiseram ouvir Péricles, acabando por perder uma guerra em que eram, à partida, favoritos, até à queda dos Impérios centrais, à fragmentação dos Balcãs ou à evolução do Médio Oriente com as mil peripécias em torno do Crescente fértil… É um conhecedor com grande profundidade não só dos acontecimentos, mas também das melhores análises dos mais experimentados historiadores. A sua memória prodigiosa permite-lhe, por exemplo, revisitar criticamente um ensaio de A. J. P. Taylor com um rigor impressionante.

Como alto-comissário para os Refugiados, esse conhecimento da História foi de uma extrema utilidade, uma vez que pôde compreender os movimentos atuais ligados a trágicos conflitos, à luz dos acontecimentos históricos, desde a Antiguidade até às guerras mais recentes. Nos momentos mais dramáticos, acompanhava as informações sobre os movimentos no terreno, de complexas e arriscadas evacuações – estando apto a tomar decisões difíceis e imediatas com pleno conhecimento de causa, através do contacto direto com os responsáveis. É verdade que as suas qualidades intelectuais levam-no a ponderar os diferentes cenários, sabendo bem as vantagens e os inconvenientes, mas sou testemunha de como não se deixa bloquear pela diversidade de variáveis. Sabe tomar decisões de risco, e quem consigo trabalhou pôde testemunhá-las.

Ao referir a generosidade e a capacidade de entrega aos outros e a causas solidárias, deve reconhecer-se em António Guterres, como uma constante, a sua qualidade de militante social. Esta é a expressão correta para designar a sua vocação.

Sendo alguém com qualidades intelectuais inequívocas, não é um teórico ou um ensaísta. É um homem com grande sentido da prática e do concreto – daí a sua paixão pela política. A militância cristã desde a adolescência fez-se em torno das causas sociais. Viveu, assim, apaixonadamente a grande renovação do Concílio Vaticano II. As encíclicas Pacem in Terris e Populorum Progressio, bem como a Constituição Pastoral Gaudium et Spes foram documentos fundamentais na sua formação.

A experiência do CASU (Centro de Ação Social Universitária), o Bairro da Curraleira, a ação dos estudantes nas trágicas inundações de 1967 – são alguns exemplos de intervenções do jovem militante social, cruciais para a sua formação. Pode dizer-se que a famosa “paixão pela educação” nasceu da militância social e da necessidade de garantir o desenvolvimento humano, a igualdade de oportunidades e a correção das desigualdades através da educação permanente e da aprendizagem.

O cuidado dos outros obrigava a dar mais importância à cana de pesca que se dá e que se ensina a manejar, em lugar de um subsídio ou de uma esmola. A educação pré-escolar ou o rendimento mínimo foram longamente maturados na experiência de militância social de António Guterres. Depois, estudou as experiências avançadas da social-democracia nórdica e do socialismo democrático. Olof Palme foi sempre uma referência forte na sua experiência política. Estando de acordo com Anthony Crosland, considerava que a igualdade exigiria a diferenciação positiva e a permanente correção das desigualdades – não só pela justiça fiscal distributiva, mas pela melhoria dos serviços públicos e pela qualidade de vida e defesa do meio ambiente. A militância social exigiria, assim, políticas públicas coerentes e eficazes, participadas pelos cidadãos e devidamente acompanhadas e avaliadas. Por isso mesmo, considerou desde o início que as potencialidades do Euro só se realizariam com uma União não apenas Monetária, mas também Económica e Social. Nesse sentido partilhou as preocupações de Jacques Delors, como Guterres, também sempre um militante social atento e ativo!

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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