Onde é que a troika se enganou sobre Portugal

Foto

As nomeações para a EDP mostraram como os nossos capitalistas gostam de andar de braço dado com o poder

A troika , está visto, conhecia mal Portugal. Talvez agora comece a conhecer melhor. Pelo menos se aprendeu alguma coisa com o episódio da nomeação dos novos membros do conselho superior da EDP. Porque este episódio mostrou bem como, para reformar Portugal, é mesmo necessário ser mais troikista que a troika .

Há quase seis meses, aquando das nomeações para a Caixa Geral de Depósitos, escrevi que "em política o que parece é", pelo que não havia forma de o Governo consertar os efeitos políticos do "desastroso processo" de escolha da nova equipa da CGD. Agora voltou a acontecer o mesmo desastre político, com a agravante de a Caixa ser uma empresa pública e a EDP ter deixado de o ser, o que parece não ter contado nada. Por isso o grave no processo de escolha dos dirigentes da EDP não foi o Governo ter-se imiscuído, se é que se imiscuiu. O grave foi os accionistas privados terem julgado conveniente a escolha de figuras que agradassem ao Governo e tivessem acesso ao poder. O grave foi, mais uma vez, ter ficado demonstrado que muitos dos nossos capitalistas não se imaginam a caminhar no mundo dos negócios sem darem o braço ao governo do momento.

Em Portugal, está visto, não basta privatizar uma empresa para que as mãos do governo se afastem do destino dos negócios, e suspeito que de tal não estava a troika à espera. É por isso que temos de fazer muito mais, se quisermos realmente um Portugal diferente deste Portugal paroquial e nepotista que é, de certa forma, o Portugal de sempre.

C ostumo ouvir dizer que este é um país de "fome antiga", um país incapaz de ver alguém destacar-se sem morrer imediatamente de inveja. É verdade, mas é a parte menos importante da verdade. Há muitos países de "fome antiga" que sacudiram a sua sorte (basta pensar nos países nórdicos, ou na Irlanda). O que em Portugal é secular e é doentio é a dependência do Estado, do poder central. As nossas "forças vivas" fizeram-se durante séculos à sombra da asa protectora do Terreiro do Paço e ainda hoje somos um país onde demasiadas empresas beneficiam de "rendas" de posição e privilégio à custa da sã concorrência e, claro, dos consumidores.

A novidade dos tempos que vivemos é que o estado de dependência do sector público e do sector privado face aos seus credores é tão grande, a aflição tão desmesurada, que desapareceu o discurso, presente ainda há poucos meses, de defesa dos "centros de decisão nacionais" ou de promoção dos nossos "campeões": a fome é tanta que já ninguém olha à cor do dinheiro. O que cria uma oportunidade de mudança.

O Governo não deve apenas fazer tudo para evitar que qualquer nova vaga de nomeações - e sabemos que há muitas por fazer, algumas com atrasos de meses - reforce a percepção de clientelismo já existente e que é política e socialmente explosiva: tem também de conseguir diminuir depressa o número de nomeações políticas. Há 20 anos, com a primeira vaga de privatizações, diminuiu muito o número de gestores escolhidos pelos governos, mas entretanto multiplicaram-se os lugares em novas empresas municipais e em muitos conselhos de administração "desmultiplicados" nas empresas públicas. Os boys encontraram novos caminhos para serem boys e é preciso acabar rapidamente com isso. É preciso evitar que muitos desses novos lugares criados um pouco por todo o país sejam ocupados pelos autarcas que, em 2013, não poderão recandidatar-se. É preciso extinguir depressa tudo o que for para extinguir. E privatizar o que for para privatizar.

Mas não basta vender activos, como mostra o caso da EDP. É necessário também afastar o destino das empresas da vontade dos governos e aproximá-lo das necessidades e opções dos seus clientes, fornecedores e accionistas. O que obriga a acelerar todas as reformas que tornem os investimentos privados menos dependentes de autorizações, licenças, favores ou cunhas, para já não falar de contratos públicos. Este país tem regulamentos a mais e um dos efeitos perniciosos desse excesso de regulamentação é que há sempre um momento em que qualquer empresário, como qualquer cidadão, fica nas mãos da vontade discricionária de um funcionário ou de um político. É isto que facilita a corrupção, é isto que alimenta as redes de "conhecimentos" em que medram os aparelhos partidários e é isto que corrói a competitividade da economia.

Há uma coisa que nenhum governo pode mudar de um momento para o outro: a nossa cultura arcaica de atrelagem ao poder. Mas tudo o resto está ao alcance de políticas reformistas e determinadas. Nas basta falar em "democratizar a economia", são necessários mais actos e também mais pedagogia.

U m dos arcaísmos da cultura política portuguesa, à esquerda e à direita, é a ideia de que o bem público é sempre melhor assegurado pelo Estado, pelos seus serviços e pelas suas empresas. Apesar da evidência esmagadora da ineficiência desses serviços e dessas empresas, das provas de abusos, desperdícios e investimentos errados, de entrar pelos olhos dentro de como é aí que se alimenta o nepotismo e a corrupção, há um discurso eterno sobre um ideal de "pureza" que, apesar de nunca ter sido alcançado, continua a ser atribuído à "bondade" congénita do que é visto como "serviço público".

É tempo de inverter este lógica. A criação de valores públicos depende, antes do mais, dos cidadãos e do que eles fizerem. É por isso altura de lembrar, por exemplo, aquilo que para a cultura nacional parece contra-intuitivo, como o facto de "o sistema de propriedade privada ser a mais importante garantia de liberdade, não só para aqueles que têm propriedade como para aqueles que não a têm". Porquê? Porque "o controlo dos meios de produção está dividido entre muitas pessoas actuando independentemente", o que faz com "que ninguém tenha um poder completo sobre nós, que nós como indivíduos possamos decidir o que fazer connosco próprios".

O autor desta reflexão, o Prémio Nobel da Economia Friedrich Hayek, não é muito bem quisto em Portugal, pois acredita-se que o poder que o Estado tem é um poder benigno para "bem da colectividade". Isso é falso, e a nossa actual colectivização dos prejuízos e das dívidas é um exemplo moderno do "caminho para a servidão" que Hayek denunciou na obra com o mesmo nome.

Hoje por hoje, devido aos apertos financeiros, aceita-se uma política de cortes que se sentem inevitáveis. Mas para sabermos que cortes fazer e que cortes devem ser definitivos - e não apenas temporários, como muitos sonham - e necessário acreditar menos na bondade intrínseca do que é estatal e mais nas capacidades da sociedade e dos cidadãos - cidadãos capazes de escolherem livremente os seus caminhos de vida, cidadãos mais empreendedores, porque menos condicionados pela infantilização das sociedades causadas por Estados superprotectores. É por isso que não podemos ficar reduzidos a discursos sobre a crise financeira, temos de travar uma verdadeira luta de ideias sobre a sociedade que queremos ser. As ideias fazem mover o mundo, a tecnocracia só garante que ele se mantém nos carris. Jornalista (jmf1957@gmail.com)

Sugerir correcção