Hotel
Há uma passagem enigmática de Sodoma e Gomorra de Proust em que o narrador conta o que sente ao entrar num hotel onde já esteve hospedado anteriormente (traduzo por minha custa e risco): "Atravessei de novo o que já fora para mim o mistério de um hotel desconhecido onde, quando chegamos, enquanto turistas sem protecção e sem prestígio, cada hóspede que regressa ao seu quarto, cada rapariga que desce para jantar, cada criada que passa nos corredores onde nos perdemos, a rapariga chegada da América que desce para jantar com a sua dama de companhia, nos lançam olhares onde não conseguimos ver nada daquilo que queríamos."
Aquilo que queremos ver no olhar de quem já está instalado no hotel onde chegamos é o reconhecimento, a familiaridade, até a indiferença (na pior das hipóteses), mas nunca a superioridade ligeiramente enfadada que parece pôr-nos à distância. Gostaríamos de ser envolvidos de imediato pelo hotel, de desaparecermos nele. Caminhamos para a recepção no intuito de nos tornarmos íntimos, seduzindo simpaticamente quem nos acolhe e disfarçarmos o melhor possível a ignorância das regras do hotel: onde são os elevadores? Onde é a sala de pequenos-almoços?
A vontade de passar despercebido é paradoxal, porque o momento da chegada é exactamente aquele em que tudo em nós rejubila com a novidade do lugar, a sua não-familiaridade. Deste modo, quando entramos no quarto, abandonamos repentinamente o que resta em nós do lar de onde viemos em favor de outro. Vamos à janela, abrimos os armários, experimentamos o colchão. De repente, estamos em nossa casa sem nunca lá termos estado, aquele quarto é nosso sem nunca o termos visto. Mais enigmático ainda é o facto de sentirmos, quase ao mesmo tempo, a vontade de sair do quarto onde mal acabámos de chegar e ir conhecer o hotel, as suas salas mais silenciosas de onde parece que todas as pessoas se foram embora sem deixar marcas.
Vencida a difícil prova descrita por Proust durante a qual enfrentamos o olhar de hóspedes e empregados e nos cruzamos por duas vezes com a mesma rapariga que desce para a sala e que uma vez é americana e outra não, sendo portanto uma e também duas, estando em toda a parte no hotel como quem lá esteve sempre, passado esse momento embaraçoso, já não se trata de conhecer, mas, como sugere Proust, de reconhecer o hotel, ainda que seja essa a primeira vez que lá vamos. A seguir - valerá a pena dizer que não podia ser de outro modo? - o nosso desejo leva-nos a sair do hotel, munidos ou não de um mapa da localidade, agora definitivamente livres do lar, porque estamos seguros de que podemos regressar facilmente ao novo lar que é o hotel.
A vontade de sair do hotel, tal como a vontade simultânea de nele ficar esclarecem muito bem a complexidade do nosso sentimento de pertença a um lar, um sentimento que é ao mesmo tempo inevitável, misterioso e inquietante. Em todos os lares, como em todos os hotéis, há desconhecidos e desconhecidas que descem ou sobem escadas e olham para nós com olhos mudos.
Historiador