Em louvor das tabernas
Não foi o poeta um dia apanhado numa foto em "flagrante delitro" entre os pipos de moscatel e de abafado?
O poeta António Nobre, em Só ("o livro mais triste que há em Portugal", publicado em Paris, em 1892), descreveu assim a "Tasca das Camelas, uma das mais famosas tabernas portuguesas:"(...) A Tasca das Camelas / Para mim era um sonho, o céu cheio de estrelas: / Nossa Senhora a dar de cear aos estudantes / Por 6 e 5! Mas ah! foi-se a Virgem dantes / Tia Camela... só ficou a camelice."
Eça de Queirós e Antero de Quental comeram e beberam na Tasca das Camelas, na Alta coimbrã que o Estado Novo haveria de destruir. O Mata-Carochas, um famoso guitarrista brasileiro, publicou em 1907 (comemora-se este ano o centenário) Memórias do Mata-Carochas, um calhamaço com cenas da boémia oitocentista. A tasca era assim chamada por ser de três irmãs todas elas Camelas e todas elas com o nome da Virgem. As Memórias contam que os estudantes perguntavam a uma qualquer das Marias Camelas: "Ó tia Maria, quanto devo aí?" E a resposta era sempre generosa: "Filho, tu é que sabes; eu sei lá quanto comeste, nem quanto gastaste? Olha, dá para aí aquilo que entenderes que deves."
Nesse tempo da geração de 70, havia, tanto na Alta como na Baixa, muitas e boas tabernas: a Virgínia das Canjas, a Isabelinha do Escabeche, a Tasca do Buraco, a Taberna do Faria, a Tasca do Damião, a Taberna da Ana da Venda, etc. Com o tempo a camelice foi-se perdendo. Agora até já nos dizem quanto temos de pagar. Mas, para salvar o pouco que resta da camelice, foi criada há três anos a Liga dos Amigos das Tabernas Antigas (era preciso ter LATA!). O seu presidente, o historiador Paulino Mota Tavares, insiste em que se devem designar por tabernas e não tascas ou tascos, os lugares escuros - como um céu nocturno só iluminado pelas "três marias" - celebrados pelo Mata-Carochas. E diz que o objectivo é "salvar as tabernas de Portugal, onde nasceram o fado e os jogos tradicionais". Ele outro dia chegou-se ao pé de mim, a proselitar, com muita lata, a causa das tabernas. Desconfiando que eu nunca tinha pedido um copo de três num balcão de zinco e que era, portanto, um perfeito ignorante em tabernas, explicou-me o que acontecia aos clientes quando o número de copos ultrapassava a conta. Pois ficavam no "quarto da corda", uma divisão que tinha uma corda bamba, onde os bêbedos dormiam pendurados com a corda debaixo dos braços. E acordavam na corda...
No século XIX a taberna alcançou as glórias literárias não só aqui como lá fora. Nas feiras do livro encontra-se por tuta-e-meia, o equivalente ao "6 e 5" dos versos de António Nobre, o livro A Taberna do grande escritor naturalista Émile Zola (no original: L"Assomoir, Paris, 1877). Nesse romance a queda no alcoolismo é retratada com um realismo só ao alcance de quem frequentou muitas tabernas (o mesmo Zola haveria mais tarde de trabalhar numa mina de carvão para conseguir escrever a sua obra-prima Germinal). Hoje as tabernas continuam a motivar a literatura. O poeta contemporâneo Manuel de Freitas escreveu o Poema sumário das tabernas de Lisboa, o qual, nestes dias de festas populares em Lisboa, pode ser trazido no bolso por qualquer turista interessado pelos sítios de louro à porta:
"Rua de São Marçal n.º 56, rua de Campo de/ Ourique n.º 39, rua de São Bento n.º / 432, rua da Cruz dos Poiais n.º 25. Calçada / do Combro n.º 38B, rua da Atalaia n.º 13, / rua de São Miguel n.º 20, rua da / Rosa n.º 123. Travessa do Conde de Soure n.º 7, travessa dos Remolares n.º 21, rua do / Jardim do Tabaco n.º 3, rua da Regueira n.º 40, / rua das Escolas Gerais n.º 126, rua de Santa / Catarina n.º 28. Largo do Chafariz de Dentro n.º 23 (...)"
Pode não ser grande literatura. Mas, se pensarmos em Fernando Pessoa (nascido a 13 de Junho, e que por isso ficou Fernando António), pode ser que, no final do périplo, ela surja... Pois não foi o poeta um dia apanhado numa foto em "flagrante delitro" entre os pipos de moscatel e de abafado na Taberna de Abel Pereira da Fonseca? Professor universitário (tcarlos@teor.fis.uc.pt)