Aconteceu o que tinha de acontecer: o país a arder
O "milagre" dos últimos anos era enganador: bastou um Verão quente para regressarem os incêndios catastróficos
Depois de vários anos de estios relativamente amenos, com temperaturas baixas e chuva em Agosto, eis que voltámos à normalidade e ao drama dos incêndios de Verão. Depois de décadas a dizer e a escrever que o problema dos incêndios só se podia mitigar encarando de outra forma os espaços rurais e as florestas que temos, eis que regressámos à rotina das declarações diárias do ministro das polícias, enquanto o ministro da Agricultura quase não aparece. Parece que nunca aprendemos nada, ou pelo menos nunca aprendemos o suficiente.
É cedo para fazer qualquer balanço, mas a dimensão de fogos como os que lavraram na zona de São Pedro do Sul, na serra Amarela (Gerês) ou em Lamas de Olo (Alvão) mostra-nos como a abordagem dos últimos anos, ainda muito centrada no combate aos fogos depois de estes se desencadearem, é limitada. Pior: é dramaticamente insuficiente. E é errada.
A primeira razão por que ocorrem fogos de grandes dimensões e consequências catastróficas é a existência de uma excessiva concentração de biomassa em manchas contínuas. Se não houver suficiente madeira acumulada e matos ressequidos, não há fogos. Quando, em contrapartida, existem manchas florestais contínuas de espécies altamente inflamáveis e nunca se limpam as matas, qualquer pequeno acidente ou descuido é suficiente para que, havendo uma ignição, o fogo progrida de forma galopante e incontrolável. Basta estar mais calor e algum vento.
Ora o que sabemos é que, neste domínio, pouco se fez, e o que se fez não chega para produzir frutos. Primeiro porque, fora das áreas das florestas de produção geridas pelas empresas de celuloses, o ordenamento florestal é quase inexistente. Depois, porque as associações de produtores florestais - única forma de ultrapassar os problemas colocados por um mundo rural dominado pelo minifúndio - arrancaram de forma deficiente e, por atrasos no Proder, estão estranguladas financeiramente. Por fim porque o Estado, que devia dar o exemplo, praticamente não trata nem limpa as matas públicas, com excepção do centenário Pinhal de Leiria.
Mas mesmo que tudo tivesse sido feito para ordenar o mundo rural, nunca se ultrapassaria um problema estrutural: a floresta portuguesa deixou de ser de uso múltiplo e, por isso, é quase inevitável a acumulação de enormes quantidades de biomassa. Este problema é ainda mais estrutural e mais insolúvel do que o da desertificação do mundo rural, pois mesmo nas regiões onde se mantém uma razoável presença humana já ninguém vai às matas apanhar lenha para a lareira e o fogão. Pior: há regiões do país onde parar à beira da estrada para apanhar umas pinhas ou umas ramadas é bem capaz de ser suficiente para uma "autoridade" bem apessoada passar uma valente multa.
Ao contrário do que se decreta em Lisboa, a utilização natural da floresta, habitual ainda há uma geração atrás, não é substituível por ordens administrativas para "limpar as matas". Quando muito, essas ordens podem ter efeito no perímetro restrito das habitações, pois quem quer que já tenha procedido à limpeza de uma mata sabe quanto é que isso custa e como não há indústria de biomassa que pague o suficiente para compensar o investimento. Ou até indústria de biomassa que consiga ser sustentável no médio e longo prazo.
Para alterar este estado de coisas será necessário não só inverter o ciclo da desertificação - algo que certamente não se consegue tornando mais difícil viver em zonas isoladas, sem escolas e sem outros serviços públicos, para mais sujeitas a uma criminalidade persistente -, como assumir que existem reais possibilidades de explorar a fileira florestal, se, para além das celuloses, outras indústrias forem capazes de valorizar a produção e, assim, justificar o investimento na preservação da floresta. E, também, se actividades complementares, como uma pastorícia dirigida para a redução da biomassa em zonas florestais, tiverem possibilidades de se desenvolver.
Há também um mundo de tarefas miúdas, invisíveis, que deviam ser feitas, que têm de ser feitas antes de se começar a pensar naquilo que habitualmente mais se discute: o combate aos fogos e os meios disponíveis. Sobretudo se pensarmos que aquilo que por regra discutimos é a espuma da espuma, isto é, a existência ou não de meios aéreos.
Primeiro, era importante existir no terreno uma força articulada de guardas e sapadores florestais que, logicamente, deviam estar enquadrados no Ministério da Agricultura e não depender do ministério das polícias, como infelizmente acontece. Sem presença no terreno ao longo de todo o ano e coordenação com quem trabalha na floresta, não é imaginável que essas forças possam ser realmente eficientes.
Depois, era necessário estudar a nossa floresta durante o período em que ela não está a arder para saber como mitigar o risco de fogo e como actuar em caso de incêndio. É possível - já vi com os meus olhos - desenvolver modelos informáticos que prevêem a evolução de um fogo de acordo com a orografia do terreno e o sentido do vento, ficando-se a saber onde este evoluirá de forma imparável e onde perderá força, devendo nestas zonas ser abertas clareiras e, mais tarde, ser posicionadas as forças de combate. Mas esta é apenas uma das várias metodologias que permitem prevenir a propagação incontrolada do fogo e passar a atacá-lo com economia de meios e recursos, mas muito mais eficiência.
Por fim, era essencial passar a olhar para o fogo de outra forma. Compreender, por exemplo, que, dentro de limites aceitáveis, o fogo é um dos factores que faz funcionar os ecossistemas. Compreender que, face à forma caótica como se espalharam casas e casinhas por esse país fora, há circunstâncias em que se devia ter o sangue-frio de deixar arder aquilo que, para ser salvo, implica sacrificar um combate mais eficaz a um grande incêndio. Não há, contudo, forma de tomar estas difíceis decisões sem o envolvimento e a co-responsabilização das autarquias locais.
As mortes de vários bombeiros (mesmo as que resultaram de acidentes aparentemente não relacionados com o combate aos incêndios) e o recurso sistemático a meios aéreos vindos de Itália (em Julho), de França e de Espanha (esta semana) mostram os limites do dispositivo existente, apesar de este implicar um investimento muito superior (vários vezes superior) ao de há alguns anos. Mostra também como, em muitas zonas do interior e do Norte do país, as forças locais de bombeiros estão exauridas e sem meios humanos (até porque vive cada vez menos gente nesses concelhos). A enorme quantidade de meios humanos e materiais que tem sido transferida diariamente do sul para o norte do país não tem impedido que, por exemplo, ao consultar a página da protecção civil, se encontrem fogos que lavram há muitas horas e estão a ser combatidos por meia dúzia de homens (ontem de manhã havia um fogo na zona de Ponte de Lima que lavrava há mais dez horas e tinha sete homens a combatê-lo...).
É também claro que é possível evoluir muito nas técnicas de combate aos fogos - utilizando mais os contra-fogos e, sobretudo, usando mais vezes as motosserras, as enxadas e as máquinas de rasto, em vez da água e dos borrifos dos helicópteros -, só que isso exige estruturas de comando capazes de lerem melhor o fogo no local e de compreenderem o que a meteorologia lhes diz sobre, por exemplo, a evolução do sentido do vento.
É fácil perceber que é muito mais o que falta fazer do que o que foi feito. É também claro que, ao colocar o MAI no centro do combate aos fogos florestais, quando os problemas começam no mundo rural e na área de responsabilidade do Ministério da Agricultura, se privilegia a espuma em vez das medidas de fundo. Pelo que está a acontecer o que muitos especialistas previam: voltámos a ter um Verão realmente quente e, com ele, voltaram os incêndios. Muita gente lançou foguetes antes de tempo. E fora de tempo. Jornalista, www.twitter.com/jmf1957
P.S.: Declaração de interesses: faço parte da direcção de uma associação humanitária que gere uma corporação de bombeiros voluntários.
P.S.2: Ferreira Fernandes escreveu ontem, no Diário de Notícias, uma crónica sobre Josefa, a bombeira da Lourosa, que é um murro no estômago da nossa vacuidade contemporânea. Obrigatório ler.