Uma história de confrontos
Já se esperava, até já se tinha escrito. Mas apesar disso foi uma surpresa. Segunda-feira, dia 7 de Junho, António Champalimaud divulgava ter vendido 40 por cento das suas "holdings" pessoais ao Banco Santander Central Hispano (BSCH). Semanas depois dos espanhóis terem saído do capital do BCP. O BSCH entrava em grande na banca portuguesa. Mas no dia 18 de Junho o Governo disse não. Bastaram três horas para o Banco Comercial Português anunciar o lançamento de uma oferta pública de troca sobre a totalidade da Mundial Confiança. BSCH e Champalimaud reagem. Garantem que não cedem. E avisam: vão manter a sua parceria e recorrer aos tribunais. Pela terceira vez, Emílio Botin cruza de forma controversa o seu destino com Portugal. E pela terceira vez mede forças com Jardim Gonçalves.
A primeira vez que se ouviu falar do Santander em Portugal foi em finais da década de 80 quando assumiram o controlo do Banco de Comércio e Indústria (BCI) - o braço da banca a retalho do Banco Português de Investimentos (BPI) - comprando acções à revelia dos acordos que tinha com os outros accionistas de referência. Estes acabaram por sair do BCI entregando o controlo ao Santander. Mais tarde, quando o Santander comprou o Banesto - intervencionado pelo Banco de Espanha - "herdou" a controversa posição do banco de Mario Conde no Banco Totta e Açores. Fruto de acção diplomática, o Santander concordou em desfazer-se do Totta. Mas nem por isso a venda foi pacífica. Estava o presidente do BCP a negociar, em nome da família Mello (ex-proprietária do Totta), a compra do BTA a Emilio Botín, presidente do Santander, quando caiu a bomba. Antes do final do ano de 1994, António Champalimaud anunciava a tomada de controlo do Totta ao Banesto. A aquisição levou o Governo de Cavaco Silva a envolver-se numa controversa batalha, dispensando o industrial de lançar uma oferta pública de aquisição sobre o capital do Totta. Estavam abertas as hostilidades com a Comissão de Mercados de Valores Mobiliários, o que levou o seu presidente de então, Costa Lima, a demitir-se. Costa Lima alegou não terem sido salvaguardados os interesses dos investidores.Passaram cinco anos. Em Abril de 1999, o Santander fusionou-se com o Central Hispano, transformando-se no oitavo maior banco europeu. Hoje, ainda que apenas indirectamente, o nome do Santander, agora no BSCH, volta a associar-se ao capital do Banco Totta e Açores. Com o negócio entre Champalimaud e o BSCH, o Totta não regressa sozinho para as mãos de Emilio Botín. Desta vez, juntam-se-lhe mais três instituições de crédito, o Banco Pinto e Sotto Mayor, o Crédito Predial Português e o Chemical. São os bancos liderados pela Mundial Confiança Hoje, a enfrentar Champalimaud, mas também Emilio Botín, está Jardim Gonçalves. Para o líder do BCP, trata-se da terceira batalha envolvendo o presidente do BSCH. A primeira foi o falhanço da compra do Totta, em Dezembro de 1994. E a segunda foi o braço de ferro que se desenrolou até há poucas semanas atrás, que acabaria com o patrão do BCP a rompe a aliança estratégica que mantinha há com os espanhóis do Central Hispano, na sequência da fusão deste banco com o Santander. Neste terceiro confronto, o líder do BCP lança-se para uma OPT sobre a Mundial Confiança. A iniciativa ainda se percebe mal, porque, aparentemente, os riscos de fracassar são enormes. O seu sucesso está dependente de Champalimaud vender parte das suas acções. Se o industrial o fizer está a respeitar a decisão do Governo mas isso significa romper o negócio com os espanhóis. E isso só os espanhóis podem fazer porque só eles vêem os seus interesse ameaçados com o veto do Governo.O sector bancário está assim lançado para uma agressiva batalha com esta entrada dos espanhóis no grupo Champalimaud, que controla a seguradora Mundial Confiança e os seus três bancos de retalho. Até que tudo se resolva, tudo pode acontecer. Os banqueiros concorrentes de Champalimaud, que foram reunindo com o Governo, e as autoridades de supervisão vão reunindo munições para que Emilio Botin saia da Mundial Confiança. Mas Champalimaud e Botin garantem que a sua parceria está sólida e é para se manter. O tempo revelará o resto. - Segunda-feira, dia 14 de Junho. O grupo Champalimaud e o BSCH entregam as 90 páginas do acordo parassocial sobre a compra de uma participação de 40 por cento na Mundial Confiança pelo banco espanhol.- Terça-feira, dia 15. O presidente da Mundial Confiança, Carlos Santos Ferreira, anuncia a sua demissão. Sendo um homem próximo da família Champalimaud e do primeiro-ministro, António Guterres, a decisão deixa o mercado perplexo. Início da tarde. O ministro das Finanças, Sousa Franco, recebe no Terreiro do Paço os presidentes do Banco de Portugal, do Instituto de Seguros de Portugal e da Comissão de Mercado de Valores Mobiliários. Às 18h00, é a vez dos quatro banqueiros. Os presidentes da Associação Portuguesa de Bancos e da Caixa Geral de Depósitos, João Salgueiro, do BCP, Jorge Jardim Gonçalves, do BPI, Artur Santos Silva, e do Banco Mello, Vasco de Mello, entram no Ministério. Desta vez, o encontro era com o secretário de Estado do Tesouro e das Finanças. Na sexta-feira anterior tinha sido com o primeiro-ministro e o ministro das Finanças.As informações oficiosas apontam para uma decisão do Governo no final na segunda-feira seguinte, ou seja, hoje.Antes do fim do dia, António Guterres faz declarações a propósito do negócio entre Champalimaud e o BSCH: "O Estado português não é uma República das bananas e terá de ser respeitado." É o primeiro sinal oficial de que o Governo se prepara para inviabilizar o negócio.- Quarta-feira, dia 16. É divulgado o requerimento enviado por Champalimaud ao Governo, em 1995, para a compra ao Banesto (já comprado pelo Santander, hoje BSCH depois da sua fusão com o Central Hispano) de 50 por cento do Banco Totta e Açores (um dos quatro bancos da Mundial Confiança). O industrial solicita dispensa de Oferta Pública de Aquisição geral, com o argumento do "interesse nacional", e para o "tornar eminentemente português".Início da tarde. O vice-presidente do Banco Português de Investimento, Fernando Ulrich deixa o mercado perplexo ao vir a público dizer: "É inconcebível que os accionistas minoritários voltem a ser sacrificados em beneficio de Champalimaud." Um interveniente no negócio estabelecido entre o industrial e o BSCH responde à letra: "Gostava de saber se o BPI também está disposto a compensar os pequenos accionistas da EDP, prejudicados na segunda fase de privatização, na qual o BPI foi o principal beneficiário?"Avolumam-se rumores sobre o eventual chumbo do negócio envolvendo os espanhóis.- Quinta-feira, dia 17- 12h00. Almeida Santos, advogado de Champalimaud em Moçambique, vem a público fazer um discurso ambíguo. O mercado deve funcionar, mas o Governo tem margem de manobra para intervir. Tarde. Tantas são as idas ao Ministério das Finanças que talvez os administradores executivos do BCP já desconfiassem da decisão do ministro Sousa Franco. Perante o cenário, que se veio a confirmar, Jardim Gonçalves prepara-se para lançar uma oferta pública de troca sobre a totalidade do capital da Mundial Confiança.- 18h00. O vice-presidente do PSD Tavares Moreira afirma que o Governo deve actuar com ponderação. Início da noite. Sousa Franco informa os jornalistas de que irá realizar uma conferência de imprensa às 9h00 da manhã, antes da bolsa abrir. Pois bem, o "chumbo" a Champalimaud era já um segredo de polichinelo. Antes do dia terminar, o conselho superior do BCP reúne de emergência e aprova a decisão da administração. O ministro das Finanças é informado da intenção do BCP, o primeiro-ministro também. - Sexta-feira, dia 18 - 9h00. A CMVM suspende a negociação dos títulos do grupo Champalimaud para evitar os reflexos da decisão governamental.- 9h10. O mercado de capitais ainda não abriu. Sousa Franco declara que o Governo não autoriza que o BSCH detenha uma posição qualificada na Mundial Confiança. Com esta decisão e de acordo com a interpretação das Finanças, inibe os direitos de voto dos espanhóis na seguradora, no que excede a posição qualificada, superior a dez por cento. É o mesmo que dizer que não quer o negócio entre Champalimaud e o BSCH.- 12h10. As rádios divulgam uma nova concentração, com a fusão entre o BCP e o Banco Mello, pelo meio aparece o BPI. O negócio é logo desmentido. Os títulos estão de novo em alta. - 12h30. O Banco Comercial Português entrega documentação na CMVM. As suas acções são suspensas. Consta agora à boca cheia de que se prepara para avançar para uma OPA sobre a totalidade do capital da Mundial Confiança. O mercado não sabe ainda bem de que se trata. - 13h00. A haver OPA, ela é hostil, porque é contra a vontade do vendedor, afirma um responsável do Grupo Champalimaud. - 14h30. Afinal, anuncia o BCP, não se trata de uma OPA, mas sim de uma Oferta Pública de Troca de acções da Mundial por acções do BCP. - 15h00. O mercado estrebucha com tanta informação, os bancos reúnem os seus estados-maiores. António Guterres solidariza-se com o seu ministro das Finanças, afirmando que "agiu no exercício das suas competência próprias, com grande rigor, com um critério extremamente seguro e com uma noção muito clara do interesse nacional". Pina Moura, ministro da Economia, esclarece que "não há problema absolutamente nenhum entre os dois governos [de Portugal e Espanha]", pois Portugal agirá dentro da lei e no seu interesse. Em simultâneo, o seu homólogo, em Madrid, Rodrigo Rato, ao mesmo tempo que recusava um confronto com o Governo português, ameaçava veladamente: "Cabe às instâncias da União Europeia e aos meios judiciais apreciar se a intervenção [do Governo português] foi ou não legal."Pelo meio, o porta-voz do PS e ex-membro do Conselho Fiscal do Santander Portugal, António Vitorino, afirmava: "Vivemos num dos espaços onde a regra essencial é a liberdade de circulação. [...] mas também a liberdade de circulação do capital. Há uma arma a residir na intervenção dos governos nacionais, que é a criação das condições macroeconómicas e de ordem administrativa e local para que as empresas nacionais possam acompanhar a passada do movimento de globalização".Quase na mesma altura Tavares Moreira voltava a chamar os jornalistas. Agora para lhes dizer: "É muito importante que o Governo explicite, de uma forma clara, as razões que o levaram a esta decisão [o chumbo do negócio Champalimaud/BSCH], bem como a justificação sobre uma alegada falta de transparência do novo grupo".Antes do final do dia o Grupo Champalimaud insurge-se contra o "veto" do Governo. Reafirma a sua ligação preferencial ao BSCH. Sobre a OPT foi claro, indisponibilizando-se para vender uma só acção ao BCP. O BSCH envia de Madrid a mesma opinião sobre o assunto.