Pela Tate Modern, com Todolí
Vai trocar a direcção de Serralves pela da Tate Modern, um espaço de arte contemporânea hoje sem paralelo na Europa, à beira dos quatro milhões de visitantes anuais. Vicente Todolí guiou-nos pela sua nova casa, entre peças clássicas e outras que podem motivar a dúvida: 'Será isto arte?'. Lição nº 1: "Arte é tudo aquilo que um artista diz que é arte".
Já havia alguns minutos que o passo se tornara mais rápido, que as salas se sucediam mais depressa, que no gravador o som dos passos começava a sobrepor-se às palavras trocadas quase furtivamente enquanto Vicente Todolí vai identificando os artistas, demorando-se cada vez menos segundos diante de cada obra."Estou a começar a ficar a cansado de ver tanto", diz-nos sem disfarçar uma gargalhada. Cansado? À nossa frente, ao fundo, na sala aonde ainda não chegámos, adivinhamos as linhas cubistas de Bracque e Picasso. Há mais de duas horas que a nossa viagem começara, dois andares acima, por uma das quatro grandes áreas de exposições permanentes da Tate Modern, em Londres. Curiosamente, também por um Picasso."Começo a ter cada vez mais a sensação de que já não estou a ver o que estou a ver", acrescenta, e passamos ao lado da escultura de uma dançarina, obra de Degas, e nem desvia os olhos. Tem outro compromisso a seguir e novas oportunidades de voltar a fazer o que fizera connosco: percorrer as salas sem fim do mais recente museu de arte moderna e contemporânea da Europa - e talvez o mais importante, neste momento.A nossa conversa começara uns dias antes, na Fundação de Serralves, de que Vicente Todolí é director até ao próximo mês de Fevereiro. Estava um bonito dia de sol mas o que tínhamos combinado era almoçar à beira-rio - e o rio, àquela hora, ainda estava envolto numa fina mas luminosa neblina. "É para se ir habituando ao 'fog' londrino", comentamos enquanto paramos por um minuto a apreciar o perfil esbatido da Ponte da Arrábida. E foi precisamente de uma parte da nossa conversa desse almoço que nos lembrámos quando Todolí nos disse que "já estava a ver sem ver"."No princípio, quando fui para Nova Iorque, no início dos anos 80, era como se só tivesse um sentido, a vista". Com 22 anos, mergulha numa cidade a viver anos de uma intensidade brutal. A sida ainda não tinha feito a sua aparição. O hedonismo conduzia então a todos os excessos - álcool, drogas, sexo - e uma parte da cidade vivia como se cada dia fosse o último, como se em cada dia se tivesse de fazer, e experimentar, o que não se fizera em todos os dias anteriores."Vivi o mundo que Nan Goldin retrata na exposição que estamos a acabar de montar no Museu de Serralves [a exposição inaugurou a 19 de Julho e está patente até 6 de Outubro]. Nessa altura os meus olhos eram como duas câmaras de filmar. Queria absorver tudo. Frequentava os bares, circulava pelas ruas e galerias, mas muitas vezes não falava com ninguém ficava só a ver. O resto do meu corpo era como se não existisse, comia umas massas, bebia qualquer coisa, e olhava, olhava". Era testemunha atentíssima, "voyeur" das noites que não acabavam, alimentadas a ecstasy, sempre à procura de algo de novo pelas ruas do SoHo nova-iorquino, o bairro dos artistas e dos boémios.E o que viu foi um mundo que acabou. Quando, depois de comermos, voltamos à fundação e percorremos as salas onde as 400 fotografias de Nan Goldin acabavam de ser dispostas, percebemos que esse mundo não só acabou, como acabou violentamente."Com a sida, os cadáveres deixaram de ser bonitos..." E como deixaram: basta percorrer a exposição de Goldin para o perceber. Por isso, depois da euforia, veio a depressão. E o jovem que chegara a Nova Iorque no início dos anos 80 com apenas 22 anos, regressa a Valência com 26 anos, na ressaca desses anos. Aí redescobre que o corpo tem mais sentidos, que nem tudo se resume a olhar, olhar, ver e ver, registar cada pormenor como uma câmara de filmar. Com 28 anos surge-lhe o primeiro grande desafio: montar o novo Museu de Valência, um projecto da Região Autónoma, que lhe dá carta branca. É esse museu que se transforma rapidamente numa referência internacional e atrai sobre si as atenções dos especialistas. Valência torna-se na capital espanhol da arte contemporânea, atraindo visitantes de todo o país. Até que entra em ruptura. Mudanças políticas na Região Valenciana cortam-lhe as asas e fazem-no viver dias difíceis que hoje o levam a dizer que nunca regressará, com cargos de responsabilidade, a Espanha."Nem para dirigir o Reina Sofia?", lançamos como se esse fosse o desafio. "Nem para o Reina Sofia. Até porque, apesar das suas dimensões e dos seus meios, o Reina Sofia é hoje um espaço menos considerado do que Serralves no mundo da arte contemporânea. Já teve cinco directores diferentes em sete anos..."A Serralves chegou há seis anos - e chegou porque escolheu o Porto em vez de Bilbau, preferindo o novo Museu da Arte Contemporânea português ao novíssimo e imponente Museu Guggenheim da cidade basca. Estranha escolha, pelo menos à primeira vista..."Eu tinha de facto um convite para ir dirigir o Guggenheim e até já tinha tudo praticamente apalavrado. Só que antes de assinar quis ir a Nova Iorque e percebi que eu ia para Bilbau, mas quem mandava era Nova Iorque. Não ia ter autonomia. Nesse mesmo dia telefonei para o Porto para saber se o convite de Serralves se mantinha".Mas não foi só a autonomia que o fez trocar Bilbau pelo Porto. Foi também, por incrível que isso pareça, os espaços onde ia trabalhar. "Ao Guggenheim vai-se ver a arquitectura, por vezes parece que pouco importa a arte que lá está exposta. Em Serralves, as exposições tem espaço para brilharem por si".Com autonomia para fazer o que achasse melhor, e depois de garantir do Ministério da Cultura financiamento suficiente para ir construindo, em simultâneo, uma colecção, Vicente Todolí foi vendo o número de visitantes subir até fazer do "seu" museu o mais visitado do país em 2001.Só que agora o desafio vai ser outro. Ao passar do Porto para Londres e de Serralves para a Tate Modern, a fasquia passa de 300 mil visitantes por ano para mais de 3,7 milhões. - Isso não o assusta?- A mim não.- É quase treze vezes mais do que Serralves...- Se compararmos o número de visitantes que recebe Londres com o número de visitantes que recebe o Porto, se calhar a diferença já não é tão grande. E eu não sou supersticioso. O meu desafio não é manter esse número de visitantes. O meu desafio é ter o respeito de todos os profissionais do mundo.Um respeito que sabe que hoje já tem, caso contrário não seria convidado a substituir Nars Nittve, o sueco que foi o primeiro director da Tate Modern e que não resistiu a um convite para ir dirigir, em Estocolmo, o mais importante museu de arte contemporânea do seu país (o Moderna Museet, curiosamente instalado num espaço desenhado por um espanhol como Todolí, o arquitecto Rafael Moneo). Se não beneficiasse desse respeito nunca poderia ser director de um espaço que, em termos de arte contemporânea, não tem hoje paralelo na Europa. Talvez nem sequer no Centro Pompidou, de Paris, que brevemente acolherá a exposição que, por estes dias, obriga os visitantes da Tate Modern a comprar bilhete com hora marcada e a aguardarem em longas filas apesar do horário de abertura ter sido estendido até às 22 horas: a "Matisse-Picasso". Por alguns apresentada como "a exposição da década" - foi assim que se lhe referiu o circunspecto "Financial Times" -, é uma daquelas mostras que só grandes museus como a Tate, o Pompidou e, depois de cruzar o Atlântico, o MoMA de Nova Iorque, podem ambicionar expor.A Tate Modern é no entanto um museu muito diferente quer do Centro Pompidou, quer do MoMA. Primeiro, pelo espaço que ocupa, o gigantesco vão do que foi em tempos uma central de produção de electricidade à beira do Tamisa, com a Catedral de São Paulo a avistar-se do outro lado das águas escuras do rio de Londres. Segundo, e muito mais importante, pelo conceito que encerra, que rompe com a forma tradicional de expor arte ao arrumar as suas peças por temas e não cronologicamente ou por correntes artísticas.Vale a pena fazer uma pequena viagem ao passado para compreender como nasceu este extraordinário espaço. Tudo começou em 1988, quando o novo director-geral da Tate Gallery, Nicholas Serota, tomou em mãos a instituição e resolveu remodelar profundamente o espaço expositivo situado em Milbank, do outro lado do Tamisa e alguns quilómetros para Oriente de Bankside, onde hoje está a Tate Modern. Essa remodelação tornou evidente que, mesmo acrescentando novas alas ao edifício da Tate, não se conseguiria espaço suficiente para expor convenientemente as suas colecções. Surgiu então a necessidade de procurar um novo espaço, tendo a escolha recaído numa central eléctrica construída imediatamente após a Segunda Guerra Mundial para abastecer a City londrina - o coração financeiro da cidade - e que, entretanto, fora desactivada. Apesar de se tratar de um edifício industrial, a velha central possuía linhas arquitectónicas de rara nobreza, ficava próxima do centro da cidade e, sobretudo, oferecia um espaço interior facilmente modulável. No fundo, estava-se perante uma "caixa" desenhada para abrigar no seu interior as caldeiras e as turbinas, uma "concha" vazia onde se podia fazer praticamente tudo o que se desejasse. E o que se desejou foi deixar grande parte desta "concha" vazia, formando um enorme "hall" - o "hall" da turbina - com o pé-direito de seis andares e capacidade para receber peças descomunais, como uma "aranha" de Louise Bourgeois na exposição de abertura do Museu.Depois, as galerias que acolhem as exposições permanentes e temporárias dispõem-se ao longo de três andares do edifício que "enche" toda a ala virada ao Tamisa da antiga central. O andar do meio acolhe as exposições temporárias, os outros dois estão divididos em quatro áreas temáticas: "Landscape/Matter/Environment" (Paisagem/Matéria/Ambiente), "History/Memory/Society" (História/Memória/Sociedade), "Nude/Action/Body" (Nu/Acção/Corpo) e "Still Life/Object/Real Life" (Natureza Morta/Objecto/Vida Real).Em cada uma destas áreas expositivas as obras de arte arrumam-se por temas, podendo conviver artistas do início do século XX com autores que estão hoje no seu apogeu criativo, misturando-se estilos e tendências, num permanente desafio ao visitante que procurar "ler" por que motivo um Cézanne pintado em 1892 convive com uma escultura de Rachel Whiteread concebida em 1992. Todos os seis meses, uma das quatro áreas temáticas é obrigatoriamente remodelada, criando-se uma nova exposição que utiliza por regra quer os acervos do Museu, quer obras cedidas. Assim, de dois em dois anos, a Tate Modern surge como um novo museu, sendo fácil que uma peça antes vista na secção "Memória" seja encontrada agora na montagem sobre o "Corpo".Por isso, quando partimos para a nossa visita, Vicente Todolí ia quase tão curioso como nós: todas as montagens tinham mudado desde que visitara o Museu pela última vez e, agora, iria à descoberta. "Mesmo assim, uma das coisas que quero pensar é se se deve continuar assim, ou se devemos rodar também os capítulos gerais, as temáticas de cada secção. Ter sempre os mesmos temas pode vir a tornar-se como que um dogma", diz-nos enquanto nos dirigimos para o primeiro sector a visitar, "History/Memory/Society"."Ora bem, deixa ver o que é que temos aqui", sussurra enquanto o seu olhar percorre rapidamente as paredes da primeira sala."É a história, vê-se bem. Temos aqui um Picasso que está, na sua temática, muito perto do Guernica. Ali está uma peça futurista, certamente relacionada com o fascismo italiano, a ideia do homem novo, de um novo dinamisno. Aquele é um Lichtenstein, apenas uma explosão, sinal da guerra. Depois temos um Seurat. Aqui a história deve ter mais a ver com a história da arte. Repare como se misturam diversos níveis de ver". Nesse momento pára, como se se interrogasse sobre o efeito que o comissário desta exposição quis obter naquela sala de entrada. "Pois é, este capítulo é tão abrangente que nele cabe tudo. Ora aí está algo em que vou ter de pensar... Há tantas possibilidades de lermos as diferentes associações entre as obras".Mas se a primeira sala criava a perplexidade da mistura, a segunda só podia ter cabimento naquele espaço temático: é totalmente dedicada à exposição de cartazes de propaganda soviéticos. "Estão a ver? Agora passamos logo a algo totalmente diferente, à história da Rússia, aos cartazes feitos depois da revolução".Por toda a sala alinham-se foices e martelos, multidões entusiasmadas, retratos de Lenine, Staline e Trotski, imagens de operários exemplares, de camponesas exaltadas, de desfiles populares, tudo em tons de vermelho, amarelo e preto.- Este tipo de figuração nos cartazes políticos perdeu-se completamente?, perguntamos-lhe.- Hoje sim. Talvez os últimos a utilizarem este tipo de linguagem tenham sido os espanhóis e portugueses, depois das suas revoluções. - Ainda sobram alguns murais do MRPP, alvitramos sem notar que o seu pensamento já saltou para novo raciocínio.- É curioso ver como esta estética do realismo socialista muitas vezes não se consegue diferenciar da do movimento fascista, de futuristas como aqueles que acabamos de ver na primeira sala. Isto é agit-prop puro e há aqui coisas com muita qualidade e outras que não. Este aqui, por exemplo, é fraquíssimo - inclina-se e aponta para uma das obras. Nem é bem um cartaz, é quase só um esboço. Aponta depois para um outro cartaz onde surge uma multidão que parece serpentear, em êxtase, e identifica o autor como um dos que mais fez para agradar aos desejos de Staline e que, como muitos outros, acabou exilado às ordens de próprio Staline. "Morreu no Gulag".A passagem à sala que fica a seguir, ao fundo do primeiro corredor, é quase como um duche frio. Depois dos cartazes, as linhas depuradas de Mondrian, o quadro com fundo branco que adivinhávamos ao longe desde que entráramos naquela ala. A ligação escapa-nos."Esta agora é uma outra fase das vanguardas - apressa-se a explicar Todolí. - Corresponde à a utopia em estado mais puro, repare-se no encarnado, talvez na tentativa de mostrar os ideais do progresso". Mas ele próprio vagueia pelos espaços entre as obras, aproxima-se de um quadro, espreita a legenda, confirma o nome do autor, faz um comentário, tenta encontrar uma explicação para o que ali encontra estar naquela sala, quais os motivos por detrás do diálogo entre as diferentes peças, tenta meter-se na pele do comissário que organizou o espaço.Assim passamos pelo novo subjectivismo alemão, a "arte degenerada" que Hitler mandou banir, por obras neo-realistas, por outras que designa como sendo de um "realismo sujo, muito empenhado politicamente", salas aonde a diferença é feita por Picasso: "Esta é uma arte comprometida. A única diferença aqui é o Picasso, que tem outra dimensão. Se eu fosse visitante, nesta sala se calhar pegava no Picasso e o resto passava...""Olha, um Brancusi". A peça é uma "Maiastra", figura estilizada de uma ave mítica do folclore do seu país, a Roménia, em bronze polido, pousada sobre um piastra de pedra toscamente esculpida. Vicente Todolí aproxima-se para ver se se trata de uma peça emprestada ou se é parte da colecção da Tate. "É nossa. Óptimo". Óptimo porquê? "Porque uma das primeiras exposições que vou comissariar aqui, em 2004, vai ser uma grande retrospectiva do Brancusi. Já estou a trabalhar nela". Nota-se-lhe de novo o mesmo brilho no olhar com que viera, radiante, ter connosco um pouco atrasado. Só o autor mudou. De manhã, estivera por Londres a ultimar as burocracias para o empréstimo das obras de Francis Bacon - um dos mais importantes pintores ingleses do século XX - destinadas à última exposição que montará em Serralves. "Vai ser a maior retrospectiva de Bacon até hoje realizada", dissera-nos com orgulho. Agora já tem a cabeça em Brancusi, talvez o mais importante escultor do século XX, e na exposição que um ano depois montará já nesta sua nova casa, a Tate Modern.Francis Bacon, Brancusi, estamos a falar de consagrados. Mas há nas salas que percorremos muitas peças cujo autor nem ele identifica à primeira. Quase desconhecidos ao lado de estrelas, salas totalmente preenchidas com a mostra de um novíssimo ainda pouco conhecido e, na sala seguinte, uma peça de Giacometti quase perdida entre outras obras que, como visitantes, seria a nossa vez de sermos tentados a ignorar. Ou talvez não."Já viram, é uma cadeira em negativo. A artista encheu o vazio da cadeira e depois fez desaparecer a cadeira. Que engraçado... Gostaram?"Sim, talvez. Mas é isso arte?"Arte é tudo aquilo que um artista diz que é arte. Tal como literatura é aquilo que o escritor diz que é literatura. Depois eu posso achá-la boa ou má, mais nada".À primeira vista, quem se atreve a concordar? Ou a discordar? Mesmo assim insistimos: - Mas pode chegar o momento em que podemos distinguir, em que já podemos dizer se é arte ou não é arte...- Não, isso é uma coisa que cabe ao artista decidir. - Mas há-de haver uma altura em que, pelo menos, percebemos o que fica e o que não fica, o que passa sem deixar marcas?- Isso é outra coisa. Dizer que é arte não quer dizer que fique ou não fique. Na literatura é o mesmo. A Bárbara Cartland também é literatura, só que é lixo. - Uma das formas de perceber o que é ou não é lixo, não será tentarmos perceber os que influenciam, os que marcam, outros autores?- Às vezes não. Às vezes há autores que aproveitam deliberadamente autores mais fracos, que depois eles como que devoram e desenvolvem. Há influências, mas também podem ser perversas. Não há regras. Reparem que Hitchcock filmava histórias fracas. Se virem apenas as histórias, elas são desinteressantes. O que as faz grandes foi a forma como Hitchcock as filmou. A única excepção é, talvez, "O Desconhecido do Norte-expresso".Paramos. Estamos agora naquilo que à primeira vista seria uma farmácia banal. Prateleiras repletas de caixas de medicamentos, imaculadas no seu branco, cobrem as paredes da sala. O balcão de atendimento também está lá, assim como uma vulgar cadeira forrada de pele branca, telefones, blocos de apontamentos e canetas espalhadas sem ordem aparente. O único toque de diferença são os três frascos com líquidos coloridos pousados sobre o balcão. Todo o cenário é uma só peça, uma obra do artista inglês Damien Hirst, o "papa" da chamada "young british art". Arte, disse ele. Arte, portanto.Estes estranhos encontros que a Tate Modern nos propicia, estes constantes contrapontos que em cada sala nos são propostos, a possibilidade de mudar tudo com regularidade, o desafio de o tentar, fazem deste museu, na expressão de Vicente Todolí, "o novo museu mais velho do mundo", um local onde "o mundo velho já acabou e o novo ainda não começou". Um espaço e uma responsabilidade que sente que lhe assenta bem, a ele que se sente um "franco-atirador". Um espaço que ele próprio como se fosse à descoberta:- Fantástico, não conhecia esta, que surpresa.- Então vai ter agora de descobrir isto tudo?- Sim. Esta forma de organização do museu permite ver obras que de outra forma nunca veríamos. Se tivéssemos apenas uma visão cronológica da história da arte, as outras desapareceriam. Assim é mais desafiante.E obriga o visitante a parar onde nunca pararia. A percorrer mais uma sala, a ir até ao fundo de mais um corredor, porque pode lá estar um Picasso, um Brancusi, um Bracque, um Giacometti, e pelo caminho tropeçar na última de um autor da mais nova geração. Atravessar "The Pharmacie". Tropeçar no molde da cadeira. Surpreender-se com uma escultura de metal de Richard Serra ou com as pedras arrumadas de Richard Long. As pedras com um Monet ao lado.Só que, depois de passar por uma casa como a Tate Modern, com os seus milhões de visitantes, a imensa colecção, os recursos quase infinitos, o gigantesco quadro de pessoal, que pode sobrar para fazer a este "franco-atirador"?"Valência. Trabalhar para mim. Ser dono do meu tempo. Estar na minha quinta onde faço um pouco de agricultura biológica. A agricultura, sabem, é que me ensinou o que é o tempo".Voltamos atrás na conversa, ao almoço junto ao Douro agora que conversamos num balcão debruçado sobre o Tamisa e Todolí fuma sofregamente um cigarro, com aquela energia (frenesim?) que coloca em tudo o que faz e diz. "Esta é a última instituição em que eu quero trabalhar", diz-nos, apesar da nossa desconfiança. Para nós, a exposição permanente é que não era a última que queríamos ver. Faltava a mostra "Matisse-Picasso", a tal exposição da década. Lá fomos, mas acabámos por percorrer as suas salas quase sem dar por elas. Como Todolí, "já não estávamos a ver o que estávamos a ver". Mas alguma coisa ficaria. Fica sempre, quanto mais não seja a imagem em que quase não reparámos e que um dia mais tarde nos surge nítida ao folhear um catálogo ou ao tropeçarmos com outra semelhante num museu do outro lado do mundo. Será essa memória que fica algures no subconsciente, o que vimos sem ver mas que regressa, a marca de água que separa a arte notável da que, como os romances de Barbara Cartland, é lixo? Vicente Todolí já tinha partido para outro compromisso e a pergunta ficou connosco, sem resposta.