Paulo de carvalho 40 anos (não) é muito tempo
Chamaram-lhe "Antologia". É um CD duplo com 40 canções de uma das figuras mais singulares da pop portuguesa do século XX. Quem se esqueceu? 40 anos é muito tempo? Uma indústria sem a memória do seu património descartou certamente o amor à própria música.
Paulo de Carvalho comemora por estes dias 40 anos de carreira, razão mais do que suficiente para prestar atenção a uma figura das mais singulares da pop portuguesa do século XX. Foi pioneiro nos grupos de rock, ao fundar os Sheiks, participou no Festival da Canção, tendo representado Portugal na Eurovisão com "E depois do adeus" - a canção que, corria o ano de 1974, serviu como a primeira senha para as tropas de Salgueiro Maia partirem de Santarém para a Revolução de Abril. Depois disso compôs o hino do PPD e filiou-se de seguida no Partido Comunista Português. Voltou a cantar em inglês para tentar uma internacionalização que não aconteceu e experimentou inúmeros géneros musicais, a ponto de ter construído um reportório eclético, em que o único fio condutor é a sua voz. Talvez por isso, há quem lhe chame "a Voz". Mas sem se prender na associação a Sinatra, Paulo de Cravalho foi trilhando um caminho que viria a desembocar na exploração de outras cambiantes para a música de raiz portuguesa. Por estes dias foi publicado um CD duplo com 40 canções escolhidas de entre as mais de duas centenas que já gravou. Chamaram-lhe "Antologia", mas Paulo de Carvalho recusa-se a encará-lo como o fim de um ciclo. Até porque, "orgulhosamente fora do sistema", como gosta de dizer, continua a fazer as coisas "não de costas, mas de frente", como o álbum que gravou em 1976. Quarenta anos será muito tempo?Porque se decidiu a fazer música há 40 anos, num país sob a égide do Estado Novo?Decidi fazer música como muita gente da minha idade. E sem a compreensão de que isso implicava aprender conhecimentos técnicos - que não tinha e que fui adquirindo ao longo dos anos. A seriedade também só fui adquirindo através da compreensão da própria profissão e dos músicos com quem trabalhei; mas sem perceber que iriam passar 40 anos. Na altura era moda formarmos grupos e cantarmos.As biografias falam dos Sheiks como o primeiro grupo em que participou. Foi assim?Foi. A minha primeira vez foi com os Sheiks, que ajudei a fundar. Na altura, quem ia para baterista era aquele que não sabia tocar - pensávamos que a bateria era um instrumento menor. E eu nem sequer cantava - nem percebia que sabia cantar. Ouvíamos discos, mas era através da rádio que tomámos contacto com as vozes que os grupos faziam: os Beatles, os Stones e outros projectos, como o Spencer Davis Group. Ouvíamos música americana, como o Elvis - de quem nunca gostei muito -, mas na altura de escolher o repertório tinha que tocar músicas deles porque perdia, democraticamente, as votações por três a um. Sou um produto, como muita gente da minha geração, da rádio. E o que é que a rádio tocava? Essencialmente - ainda que menos do que hoje - música anglo-saxónica.Apesar da citação dos Beatles e dos Rolling Stones, os temas dos Sheiks incluídos nesta colectânea demonstram, sobretudo, influências da música negra americana. Estão muito mais próximos de Marvin Gaye ou de Otis Redding.O disco de onde foram retiradas essas canções ["Tell me bird" e "Missing you"] foi produzido por mim, portanto é natural que tenha levado os outros Sheiks por caminhos que não aqueles que estavam de acordo com o gosto deles mais imediato. Eram as minhas influências, apesar de não simpatizar tanto com o Otis Redding. Gostava mais do Marvin Gaye. Mas a minha primeira grande referência foi o Ray Charles.Quando, já nos anos 70, enveredou por uma carreira a solo, entrou em edições do Festival da Canção e passou a fazer parte do sistema...Está-se dentro do sistema quando não se entende o que é o sistema. A partir do momento em que se compreende o que é o sistema, então sim, escolhe-se estar dentro ou fora desse sistema.Então foi por ingenuidade que, em 1970, concorreu ao Festival da Canção, com o tema "Corre Nina"?Foi por ingenuidade, mas também porque era assim que as coisas se faziam por quem queria ir para a música. O Festival da RTP era a única coisa importante neste país nessa altura. Quem queria mostrar-se, ou mostrar o seu trabalho, tinha que passar por ali. Quem não estava no sistema - vamos falar do Adriano Correia de Oliveira ou do José Afonso - era silenciado e os seus discos não existiam. No fundo, é o que se está a passar hoje comigo e com mais gente. Uns estão fora apesar de fazerem tudo para estar dentro. Eu estou orgulhosamente fora.Não me arrependo nada. O caminho era aquele, se bem que as coisas tenham sido feitas com ingenuidade - mas também com amor. Provavelmente muitos de nós foram utilizados por ausência de consciência política. Cantávamos coisas que, nas entrelinhas, eram contra o regime da altura, mesmo que não tenhamos percebido o que se estava a passar. Acho graça às pessoas que, anos depois, conseguem fazer a História dessa época relacionando coisas que se passaram por acaso. Quando me dizem: os Sheiks ajudaram a mudar socialmente muita coisa na nossa sociedade... Ai sim? Porreiro, até acho bestial ter contribuído para isso, só que na altura não dei por nada.Também foi por acaso que "E depois do adeus" foi escolhida como senha da Revolução de Abril?Não foi tão por acaso como isso. Já me contaram várias histórias e é algo muito português cada um ter a sua história. Que eu saiba já há pelo menos dez pessoas que contribuiram para que o "E depois do adeus" fosse a primeira senha da revolução. Não sei de que lado está a verdade mas não estarei muito longe se disser que foi porque essa foi a música que representou Portugal na Eurovisão. Portanto, não levantaria suspeitas se passasse na rádio. Segundo ponto: o José Niza, autor da letra, já tinha alguma importância política no PS, que tinha sido formado há relativamente pouco tempo e era muito amigo do Salgueiro Maia, em Santarém, de onde são os dois. A música foi escolhida por isso.Eu estou na História, apesar do cada vez maior branqueamento relativamente a esse tempo - a nível de cinema, de exposições, de imprensa -, parece que tudo começou com o "Grândola". Vamos distinguir: uma coisa é a importância da pessoa, a pessoa José Afonso, que modificou a música portuguesa e fez a canção que simbolizou a Revolução. Outra é branquear a História, não dizendo que tudo começou com uma cantiga chamada "E depois do adeus". Se não tivesse passado na rádio, os militares não tinham saído.É uma canção ainda hoje emocionalmente poderosa. Tem especial afecto por ela?Tenho afecto por essa e por mais uma centena delas. Serviu para que hoje possamos viver melhor e possamos falar mais alto.Há a história segundo a qual Ella Fitzgerald teria manifestado interesse em cantá-la. O José Niza diz que é verdade. E o José Niza, nessa altura, trabalhava na editora para a qual gravei. Até sei mais histórias dessa canção, mas a importância delas é dada, posteriormente, pelas pessoas e pelos seus interesses particulares. Nunca estive com a Ella Fitzgerald, que era uma das minhas referências, mas ficaria orgulhosíssimo se ela alguma vez cantasse uma cantiga que eu cantei. Que volta daria ela? É uma cantiga de um género muito marcado, muito anos 70 em Portugal, e que se aguenta porque tem o significado que tem para nós, sendo uma belíssima canção. Provavelmente hoje não faria sentido compor daquela forma. É intemporal fundamentalmente por causa das nossas memórias. Agora, a qualidade da música e do texto, até acho que escapa a muita gente.Depois de 1974 compôs o hino do Partido Popular Democrático (PPD), hoje PSD. Na altura os cantores não eram todos comunistas? Como é que isso aconteceu?O PPD era um partido de esquerda. Ando há vinte e muitos anos a explicar essa história. Eu fiz um hino cuja letra é "Paz, pão, povo e liberdade; todos sempre unidos no caminho da verdade". Era o que eu pensava na altura e é o que penso hoje. Era a forma como eu achava que devia ser reconstruído o país - provavelmente de forma ingénua e utópica. Era naquilo que eu acreditava e foi aquilo que fiz. O que é facto é que o PPD tinha na sua linha programática a "via para o socialismo". Portanto, não mudei nada e volto a dizer isto sem querer ofender os sociais democratas de hoje. Tive um convite mais ou menos formal, do Dr Sá Carneiro e de uma série de elementos da direcção do partido. Mas não quero provocar qualquer polémica até porque, partidariamente, sinto-me afastado de qualquer força política.É também nessa altura, 1974, que gravou muitas canções em inglês. Foi uma tentativa de internacionalização, ainda que frustrada?Foi assumida a tentativa de uma carreira internacional que só se fazia, no entendimento das editoras e no meu próprio, a cantar em inglês. Sabemos hoje, felizmente, que isso é um erro, até porque não conheço ninguém que tenha feito carreira internacional a partir de Portugal cantando em inglês. Se uma pessoa se baseia nas suas raízes culturais e quer fazer uma música portuguesa próxima da música étnica ou daquilo que a globalização nos leva a chamar de "world music", vai ter que cantar em português.É esse o caminho que tem vindo a trilhar, desde os Sheiks, influenciados pela música anglo-saxónica e cantada em inglês, até hoje?Foi uma aprendizagem constante, sobretudo devido ao contacto com poetas portugueses, como o José Carlos Ary dos Santos. Nessa altura ele foi, provavelmente, o expoente máximo, até talvez pela sua truculência e pela maneira directa como abordava os assuntos. Havia ainda o José Niza, o Vasco de Lima Couto - e estou a ser injusto porque não me lembro de outros. Mas hoje, o Carlos Tê escreve muito bem, o Jorge Palma escreve muito bem... Há muito boa poesia na nossa música. Mas essa música não é divulgada como merecia. Quando falamos nos Gaiteiros de Lisboa estamos a falar das coisas mais bonitas que existem no mundo. Mas a maioria das pessoas saberá quem são os Gaiteiros de Lisboa? A partir de 1985, em todos os meus discos está presente a guitarra portuguesa, ainda que por vezes através de tentativas frustradas de fazer coisas novas. Existe uma tentativa de entendimento e a necessidade de me apegar às raízes culturais.Curiosamente, e voltando ao período pós-revolucionário, o fado foi conotado como música reaccionária. Ainda assim gravou alguns fados nessa época...Em perídos assim há sempre excessos. Mas isso quererá dizer que todas as pessoas de esquerda achavam o fado reaccionário? Houve foi pessoas de direita que se serviram disso, e a própria Amália exagerou nas queixas que fez relativamente à forma como foi tratada. Ela sempre foi querida por grande parte do nosso povo, de direita ou de esquerda. Da minha parte digo o seguinte: o fado é a música da minha terra. Sempre ouvi fado. Há fados péssimos? Há. Há gente que canta mal o fado? Há. Mas é a música tradicional de Lisboa. Em 1976 eu estava a fazer fados que o Carlos do Carmo pedia a compositores mais novos. Aí nasceu o "Lisboa Menina e Moça", que hoje é uma música que faz parte do povo. Essa é a minha resposta a esse tipo de acusação que foi feita, estupidamente, por quem quis tirar partido de tudo isso consoante as suas ideias políticas. À direita e à esquerda.Não consigo analisar este movimento. O Camané já é Camané há vinte anos apesar de continuar a ser tratado como revelação. Em termos femininos há muita gente que canta bem e penso que à procura de um caminho. Quando se esquecerem que existiu uma grande cantora de fados em Portugal, talvez encontrem esse caminho. É bom que esta gente nova que canta tão bem vá conhecer outras cantadeiras de fado que não a Amália: a Lucília do Carmo, a Maria Teresa de Noronha, a Argentina Santos.... Porque não existiu só a Amália. É injusto falar-se só de uma pessoa como a melhor na sua arte - e isto não tira importância nenhuma à Amália.Hoje os seus espectáculos passam por uma reinterpretação da música tradicional portuguesa?Tenho hoje um projecto que se chama OLUAP - Paulo, ao contrário - em que o André Sarbib toca piano e o Filipe Lucas toca guitarra portuguesa de 14 cordas. Eu utilizo a voz e toco alguma percussão. Fazemos repertório popular português e uma ou outra coisa original. Desde o "José embala o menino" até ao "Sôdade" de Cabo Verde, passando por fados tradicionais e pelos "Meninos do Huambo", andamos por aí. Transformámos essas canções em função do que nos apetece. Há uma grander parte instrumental e muita improvisação neste espectáculo. Já andamos a fazer isto há algum tempo e é isso que vou fazer quando fechar este balanço de carreira e o espectáculo dos 40 anos.