Os prisioneiros de Peniche
Dois ex-presos políticos revivem os anos passados atrás das grades da Fortaleza de Peniche, uma das mais emblemáticas prisões do Estado Novo. São homens com memórias extraordinárias de um sonho chamado revolução e de uma cadeia à beira de ser pousada.
Francisco Martins Rodrigues recorda-se de tudo como se fosse hoje. As agruras da clandestinidade, o horrível apito do guarda, a tortura do sono e a fuga. A grande fuga da Cadeia do Forte de Peniche. Quando fala da noite de 3 de Janeiro de 1960, os seus olhos cansados iluminam-se: "Foi a melhor fuga de todas". Nessa noite de Inverno, dez homens, entre os quais Álvaro Cunhal, evadiram-se da prisão de alta segurança do regime salazarista. "Uma manhã, estava a varrer o corredor com o Cunhal e ele convidou-me para fugir. Aceitei logo", recorda Francisco, Xico para os amigos. Nessa altura nem lhe passava pela cabeça que três anos depois iria abandonar o PCP. E muito menos que o 25 de Abril o surpreenderia atrás das mesmas grades. Foi o último preso político a abandonar a Fortaleza. Carregava então a memória de 12 anos de clausura, metade dos quais cumpridos em Peniche. Durante os seus 40 anos de existência, a prisão da Fortaleza, a cargo da Direcção-Geral dos Serviços Prisionais, assistiu a várias evasões, mas nenhuma teve o impacto da "grande fuga" do piso 3, do pavilhão C. Estava tudo planeado ao pormenor. "Nada podia falhar", recorda Francisco. O partido precisava dos seus militantes no terreno e, sobretudo de Álvaro Cunhal. Esta não era uma fuga como outra qualquer. No exterior, os reclusos contavam com a ajuda de António Dias Lourenço, Octávio Pato e Pires Jorge. Sabiam também que tinham a preciosa colaboração de José Alves, um guarda republicano descontente com a derrota do general Humberto Delgado nas eleições presidenciais de 1958. "O PCP pagou-lhe 200 contos - na altura era muito dinheiro -, e depois da fuga ajudou-o a fugir com a família para um país do bloco comunista", conta Francisco. No dia da fuga, José Alves atirou uma garrafa de clorofórmio para dentro da cela de um dos fugitivos. Às três da tarde, em ponto, o actor Rogério Paulo parou o automóvel em frente à Fortaleza e abriu o porta-bagagens três vezes - era o sinal de que tudo estava a postos. "Estava a correr como combinado." Francisco tentou jantar normalmente, mas a comida enrolava-se na boca, custava a passar na garganta. E o rancho até era melhor do que o habitual, ainda havia sobras dos petiscos trazidos pela família, no Natal.Eram oito da noite quando o guarda de serviço ordenou o regresso às celas. No corredor, saltaram para cima do vigilante e puseram-lhe uma toalha embebida em clorofórmio na boca. Estrebuchou até adormecer. "Este guarda nem era dos piores." Azar.Logo que tiraram a chave do piso, pendurada no cinto do vigilante, correram para a porta. Arrependido, o guarda José Alves esperava-os. "Ele pensava que era só o Álvaro Cunhal e o Xico Miguel, quando nos viu a todos assustou-se", revive Francisco. Em pânico, José Alves aproveitava a sua ronda habitual para transportar os dez comunistas em fuga, um por um, debaixo do seu capote. Devagar, em silêncio, desde a porta do pavilhão C até à muralha. "O jeito que deu a farda do guarda", reconhece Francisco. Estava frio, mas ninguém parecia dar por isso, tal era a excitação, o nervosismo. A escuridão protegia-os. Por fim, José Alves chegou junto à muralha com o último evadido. "É então que o guarda pousa a espingarda, despe o capote e foge connosco." A adrenalina estava ao rubro. Sem mais, os fugitivos desceram a muralha por uma corda de lençóis. Depressa, em silêncio. "Depois fomos a correr pelas ruas da vila até aos carros que nos esperavam." Para trás ficava o cativeiro de Peniche. Da lista dos fugitivos figuram homens com mais de 20 anos de prisão como Francisco Miguel. Entre os nomes mais sonantes estão os de Álvaro Cunhal, Joaquim Serra, Joaquim Gomes, Rogério de Carvalho. Mas há outros, igualmente empenhados na revolução: José Carlos, Guilherme Carvalho, Carlos Costa, Pedro Soares e Francisco Martins Rodrigues. Todos de volta à clandestinidade. Se nessa altura lhe dissessem que iria abandonar o PCP, Francisco duvidaria. Depois da "grande fuga" ainda esteve com Álvaro Cunhal em Moscovo, mas isso foi antes de perceber que era maoísta, antes de se afastar dos "camaradas", antes de fundar em Paris, em 1963, a Frente de Acção Popular (FAP), temida pelas suas actividades terroristas. Isso é outra história.A evasão de 3 de Janeiro de 1960 deitou por terra o mito do presídio de alta segurança. O director da cadeia, Afonso Neves, e o chefe dos guardas, Vitor Ramos, nunca mais esqueceram a humilhação. "Até disseram que um submarino soviético nos tinha ido buscar", relembra Francisco.O pavilhão C, inaugurado em 1956, ainda tinha as paredes muito brancas quando os reclusos se escapuliram. As celas apenas com uma cama, um lavatório e um balde para as necessidades estavam quase novas. "Aquilo parecia uma prisão como se vê nos filmes americanos", diz Francisco. No primeiro e no segundo piso do pavilhão C estavam as salas colectivas, no terceiro as celas individuais. Francisco ainda se irrita quando pensa no apito: "Os desgraçados do guardas passavam o tempo a apitar". Da memória também não apaga o som da tranca da cela nem tão pouco a retina do carcereiro colada ao olho de judas da porta. "Por aquele buraquinho, viam tudo o que fazíamos." Privacidade era um conceito inexistente: os presos estavam sempre sob o olhar dos guardas, mesmo nos momentos mais íntimos. Os carcereiros estabeleciam as regras, os reclusos aprendiam a contorná-las. O decreto lei 26643, de 28 de Maio de 1936, não deixava margem para dúvidas: "As conversas terão lugar por forma a que o funcionário que a elas assista as possa ouvir e compreender". Mas sempre que era necessário, os prisioneiros falavam em código com as visitas. "Por exemplo, o tio não-sei-quantos era o Salazar", explica Francisco. Havia também estratagemas para passar mensagens. Quantas não terão passado, escondidas nas ofertas dos familiares? Dentro de um pacote de leite, no interior das asas dos sacos de rede e até num cigarro. "Esvaziava-se o cigarro e substituía-se o tabaco pela mensagem", conta Francisco.Na prisão, as regras tornaram-se mais severas, sobretudo depois da "grande fuga". Cá fora, aumentava a contestação ao regime, rebentava a Guerra Colonial e as lutas estudantis. Ainda em 1961, com a inauguração dos pavilhões A e B, ficou completa a construção da prisão de alta segurança.O fio da memória leva Francisco ao dia em que entrou na clandestinidade, seis anos antes de participar na "grande fuga". Estava um bonito dia de Outubro, os convidados sorriam, felizes no seu melhor fato, só os noivos pareciam ansiosos de mais. É normal estar-se tenso no dia do casamento, terá pensado a família e até o funcionário do Governo Civil que os casou. Mas a razão da impaciência de Francisco e de Maria Fernanda era outra: estavam prestes a mergulhar na sombra. Depois de almoço, os recém-casados despediram-se, dizendo que iam para o Porto. "Passei à clandestinidade no dia do meu casamento, em 1954", recorda Francisco. Os noivos nem saíram de Lisboa. A PIDE já andava de olho nele, mas quem é que podia desconfiar de uma lua-de-mel?Francisco teve muitos nomes, perdeu a conta. E casas também. A vida na clandestinidade não era fácil: ele andava na rua a preparar a revolução, ela ficava em casa. "Dizia aos vizinhos que eu era caixeiro-viajante, para não desconfiarem das minhas ausências", recorda. Vivia escondido, sobressaltado, mas é claro que havia episódios caricatos como as visitas do camarada Pires Jorge, apresentado aos vizinhos como sendo um tio da província. "Ele levava um saco com couves que distribuíamos pela vizinhança e tudo."Depois da "grande fuga" de 1960, Francisco voltou à clandestinidade. Mas foi como membro da FAP que passou "verdadeiramente à acção". Estava obstinado em derrubar a ditadura. A FAP não brincava em serviço e estava cansada dos "brandos costumes do PCP". Numa fria noite de Novembro de 1965, Francisco perdeu a paciência. Juntamente com um camarada, arrastou o informador da PIDE que denunciara João Pulido Valente para a mata de Belas e matou-o. "Foi um grande desafio à PIDE, fui preso dois meses depois", recorda. Regressa a Peniche em 1970, com uma pena de 20 anos. Tinha à sua espera uma cela no piso dos terroristas.Nessa cela soube que a revolução já não era apenas um sonho. "Os guardas estavam estranhos, mas nunca imaginei...", diz Francisco.Nem queria acreditar que tinham levado o rádio, proibido o recreio e as visitas. Por que raio estavam a castigá-los? Ultimamente, os carcereiros até andavam calmos, Francisco não percebia. Ao final da tarde, o boato "de que se passava qualquer coisa em Lisboa" já circulava nas celas. Ficaram confusos, desconfiados até. Nessa noite, os homens de extrema-esquerda dormiram por turnos e barricaram a porta do seu piso com camas. "Não fosse o golpe dos fascistas." Os terroristas estavam alerta.Acordaram com as reivindicações da população de Peniche. "Libertem os presos políticos! Libertem os presos!" Afinal, o golpe era de esquerda. "Era a revolução, caramba!", revive Francisco. Nessa manhã de sol, o capitão-tenente Carlos Alberto Marques Machado Santos e o major José Maria Moreira de Azevedo chegaram a Peniche com ordem para libertar todos os presos políticos, excepto os três que tinham crimes comuns no cadastro: Francisco Martins Rodrigues é um deles. Solidários, os outros presos de extrema-esquerda decidiram, em plenário, não aceitar a libertação. "Foi o primeiro plenário do pós-25 de Abril. O plenário dos presos maoístas e maus." Na madrugada de 27 de Abril, Francisco livrou-se do cativeiro. António Dias Lourenço cumpriu a missão de militante comunista à risca. O partido comandou-lhe a vida e ele obedeceu sempre, com convicção. Enquanto os 10 reclusos se evadiam do pavilhão C, em 1960, Dias Lourenço esfregava as mãos para acalmar os nervos. Era ele quem tratava da organização da fuga com o guarda republicano. "Não podia falhar", relembra.Um preso político estava sempre a engendrar fugas, era o lema. Dias Lourenço honrou-o até ao último dia de ditadura. Na noite de 17 de Dezembro de 1954, escapuliu-se da prisão de Peniche, ao fim de cinco anos e um dia de cativeiro. Foi uma fuga digna de Alcatraz. A noite estava gelada. "Desta é que é", repetia Dias Lourenço para si mesmo. Na sequência de uma fuga falhada, fora parar ao Baluarte Redondo, uma construção junto à muralha, conhecida por Segredo, onde os presos eram colocados em total isolamento. A pequena construção, datada de 1557, tinha três celas vazias. Durante o dia, Dias Lourenço apenas tinha um balde para as necessidades. Às nove da noite, o carcereiro trazia uma enxerga e três mantas que recolhia ao amanhecer. Decidido a fugir, Dias Lourenço levou para o castigo uma faca sem cabo e um bocado de arame. Colou os objectos ao corpo sob um pano pintado de cor-de-pele. Antes de entrar para o Segredo, os guardas mandaram-no despir. "Ficávamos em pelota." Revistaram-lhe a roupa, mas não descobriram a artimanha. Passou os dias no Segredo entretido a preparar a fuga. Pacientemente, recortou um rectângulo na porta da cela que disfarçava com uma mistura de pão mastigado e raspaduras de tijolos, não fosse o guarda olhar bem para a porta. Nunca fiando.Pouco passava da uma da manhã, quando Dias Lourenço retirou o rectângulo da porta e se evadiu. O frio gelava-lhe os ossos. À cabeça, levava uma trouxa de roupa, nas mãos uma corda de mantas com 24 metros. Desceu a muralha pela corda. "Depois saltei para a água, estava fresquinha." A maré arrastava-o, enrolava-o. "Demorei 45 minutos a nadar 400 metros." Pelo caminho perdeu a trouxa.Chegou a terra encharcado, com a cabeça a sangrar e a barba por fazer há 15 dias. "Estava assustador", reconhece. Valeu-lhe um grupo de pescadores: "Primeiro, acharam que era um galdério, mas quando lhes disse que era comunista, esconderam-me na camioneta do peixe e levaram-me até ao Bombarral". Às quatro da manhã, o carcereiro deu pela sua falta. Os guardas ficaram coléricos, mas quando viram a roupa perdida no Oceano, acalmaram-se: "Pensaram que me tinha afogado".Nessa altura, a prisão da Fortaleza estava longe de ser um presídio de alta segurança, os pavilhões ainda nem existiam. Antes de ter ido para o Segredo, Dias Lourenço estivera preso numa caserna, com mais de 20 camaradas. A proximidade facilitava o diálogo, a troca de ideias. A prisão era então uma escola de comunistas, de revolucionários. Cada um ensinava o que sabia. Aprendia-se de tudo: francês, inglês, matemática e história. E até se fazia alfabetização. "Muitos camaradas, alguns analfabetos, saíram de Peniche com uma certa cultura."As leituras proibidas, trazidas pelas visitas, circulavam às escondidas dos guardas. Quando aparecia o "Avante!" era uma festa. Dias Lourenço foi um dos fundadores da biblioteca dos presos. "Chegámos a ter muitos livros", recorda. Um dia, decidiram baptizá-la de Biblioteca Soeiro Pereira Gomes. Fez-se o carimbo e catalogaram-se as obras, mas quando os guardas descobriram quem era o homenageado, apreenderam os livros.Dias Lourenço não era homem de perder tempo. Pouco depois de escapar do Segredo, voltou a pedalar Alentejo e Algarve fora, a espalhar o comunismo. A PIDE andava alerta. Num dia de calor de 1962, Dias Lourenço foi novamente caçado. Estava em Buarcos, com a companheira e dois filhos bebés. "O miserável inspector Gouveia que me espancou na primeira vez que fui preso, tinha tantas saudades minhas que foi ter à Figueira da Foz", relembra.Sempre teve a mania das graçolas, mas os agentes da PIDE nunca gostaram de piadas. "Sou membro do Comité Central do Partido Comunista e não digo mais nada", gritou Dias Lourenço assim que o agente da PIDE lhe fez uma pergunta. Estava a brincar com o fogo. Bateram-lhe, submeteram-no a choques eléctricos e ainda lhe fizeram engolir um papel do PCP, mas só lhe conseguiram arrancar a exigência de uma cadeira. "Eles [PIDE] deixavam-nos em pé dias seguidos. Pedi uma cadeira logo na primeira vez que fui preso, espancaram-me. Da segunda vez, o Tinoco tinha lá deixado um papel a dizer 'pode sentar-se no chão'." A tortura prolongou-se por cinco dias. Mas é claro que também passou cenas engraçadas, como quando, ao chegar à Fortaleza pela segunda vez, o chefe dos guardas lhe devolveu a roupa que perdera na fuga de 1954. "Mais dia, menos dia tinhas que cá vir parar", disse o guarda. "Pois é, senhor guarda, o bom filho a casa torna." Até mesmo anedóticas: o guarda que o caçou em Palmela, entrou dentro de casa a apontar-lhe uma carabina, ao mesmo tempo que tirava o chapéu e pedia licença. "Faça favor, senhor guarda."Quando chegou a Peniche em 1963, Dias Lourenço mal reconheceu a prisão: as casernas tinham dado lugar aos pavilhões. A vida na cadeia era então insuportável: os castigos multiplicavam-se, a comida era péssima, as visitas frequentemente proibidas e a correspondência interceptada. Aumentava o despotismo dos carcereiros, crescia a revolta dos reclusos. À conta dos maus tratos, os prisioneiros deram voz a um protesto baptizado de "gritarias". Estávamos em 1964. À noite, de quatro em quatro horas, os detidos gritavam em uníssono: "Temos fome, queremos comer! Queremos visitas!". Os gritos chegavam à vila. Dias Lourenço não esquece a vingança dos guardas: "Fomos brutalmente espancados", acusa.O novo parlatório, inaugurado em 1967, piorava ainda mais a situação dos reclusos. Uma banca de mármore de dois metros de largura, com um alto vidro ao meio, separava os detidos das visitas. Não se podiam tocar e mal se conseguiam ouvir.Os pavilhões de alta segurança festejaram em surdina a saída de cena de António Oliveira Salazar, em 1968. Com a chegada à Presidência do Conselho de Ministros de Marcello Caetano, o regime prisional tornou-se menos severo, circulavam mais jornais, havia um rádio e até uma televisão. À custa de estar sempre a engendrar fugas, Dias Lourenço viu chegar a liberdade numa cama de hospital da prisão de Caxias. "Fingi-me doente, pois tinha um plano de fuga. Era muito difícil voltar a fugir de Peniche", explica. "Ia escapar vestido de mulher: já tinha aprendido a andar bamboleante como as senhoras, tinha duas perucas, meias de vidro, uma saia e tudo." A revolução acabou-lhe com o plano. "Está tudo no ar", gritava o guarda do hospital de Caxias, no final da manhã de 25 de Abril de 1974. Logo que descobriu que o "tudo" era a revolução, Dias Lourenço ficou eufórico. Pediu uma televisão e uma telefonia para acompanhar os acontecimentos e uma garrafa de champanhe para festejar. Preso no seu desassossego, esperou a libertação, com a garrafa na mão. "Nem sei explicar o que senti naquele dia: foi a alegria da libertação do nosso povo", recorda. A revolução estava na rua.Nascido e criado em Peniche, João Firmino Rosendo acompanhou a par e passo a história da prisão. Tinha 23 anos quando leu pela primeira vez o "Avante!" e nunca mais encontrou jornal melhor. Foi amor à primeira vista. João Rosendo era um mensageiro clandestino. Ajudava os presos como podia: visitava-os levando o farnel e o "Avante!". A aventura repetiu-se até a direcção da prisão restringir as visitas aos familiares. Quase todos os dias, João deixava os afazeres da pesca e caminhava para a Fortaleza, na companhia de dois "camaradas amigos". Os guardas já o conheciam, os mais simpáticos até o cumprimentavam. No recreio da prisão, um espaço muito pequeno, entalado entre as altas paredes brancas dos pavilhões, João tornou-se comunista convicto. "A Fortaleza foi a minha escola de comunismo." Ao fim de algumas visitas, já sabia enganar os dois vigilantes do recreio. Estava tudo combinado: enquanto uns presos roubavam a atenção dos carcereiros, João tirava os papéis proibidos de dentro das suas botas de pescador. "Quando não dava para puxar as folhas, tinha que me descalçar." Ainda se agita quando recorda a aventura. E nunca mais esqueceu a solidariedade que havia entre os presos. "Se levava um maço de tabaco, eles dividiam entre eles."Quando o rumor do golpe de estado chegou a Peniche, João correu para a Fortaleza. "Valha-me Deus, é a revolução!" Nem queria acreditar. À medida que a notícia se espalhava pela vila, o povo corria para junto das muralhas. João só voltou a casa depois de ver sair, debaixo de aplausos, o último preso político. Era a glória dos prisioneiros.Passaram-se 28 anos desde o 25 de Abril de 1974. Os pavilhões de alta segurança da antiga prisão ainda estão na Fortaleza: imponentes, tristes, envelhecidos, com grades ferrugentas e paredes de tinta branca gasta. À espera do futuro. Francisco Martins Rodrigues tem 74 anos. É um homem seco, rijo. Continua a ser um revolucionário, com fama de terrorista. "Sou comunista e serei sempre, eles [PCP] é que não são comunistas", afirma com convicção, com orgulho e até juraria se não fosse ateu. Hoje, Francisco é director da "Política Operária", uma revista de orientação maoísta. Trabalha numa pequena gráfica da Rua do Crucifixo, em Lisboa, e dirige as "Edições Dinossauro". Ainda sonha com a revolução, "a grande revolução".Dias Lourenço não se conforma com o resultado das últimas legislativas: o seu mundo ainda se faz de fascistas e comunistas. O discurso inflamado e o olhar vivo negam os seus 87 anos. "A revolução é a minha vida. Serei comunista até morrer", afirma. Foi director do "Avante!" durante dezassete anos e membro do Comité Central décadas a fio. Prisioneiro das recordações da oposição à ditadura, vive empenhado em honrar o passado. Agora, para que ao seu conto não sejam acrescentados pontos, está a escrever o livro "Anti-memórias de um tempo histórico". De vez em quando, vai a Peniche contar histórias da prisão aos estudantes que visitam a Fortaleza. Continua a gostar de piadas. É um guardião da memória que não perdeu o sonho de "instaurar uma sociedade sem exploração de classes".Dias Lourenço e Francisco não têm traumas, asseguram. Algumas mágoas e mazelas sim, traumas não. A causa justificou o sofrimento.João Rosendo tem 78 anos. É um comunista ferrenho, daqueles que suspiram por Álvaro Cunhal, pela desaparecida União Soviética e se irritam com modernistas como João Amaral. Ao peito, une o impossível: religião e comunismo, Cruz de Cristo e foice. Tudo no fio de prata que carrega, com devoção. Hoje, continua a percorrer as ruas de Peniche, com o "Avante!" debaixo do braço. Longe vão os tempos em que vendia 53 jornais, agora vende 15. A custo. As vidas de Francisco, Dias Lourenço e João Rosendo são como os seus discursos. Estão marcadas por revolução, causa, camaradas, companheira e operários. As memórias não têm prazo de validade.