O som das letras
A ópera "Divara-Água e Sangue", baseada no drama teatral "In Nomine Dei", de José Saramago, estreia em Portugal. Razão para uma conversa com Azio Corghi, o compositor que se deixou fascinar pela forma como o escritor habita a História e que tentou recriar a sua obra através dos sons.
Dez anos depois de "Blimunda", a ópera de Azio Corghi (n. 1937) baseada no romance "Memorial do Convento", de José Saramago, o público português terá finalmente a oportunidade de conhecer a segunda colaboração entre o compositor italiano e o Nobel português. "Divara-Água e Sangue", a partir do drama teatral "In Nomine Dei" terá a sua primeira apresentação na próxima terça-feira, dia 17, no Teatro Camões, em Lisboa, numa nova encenação assinada por Christop Nel. A produção original teve a sua estreia no Städtische Bühnen de Münster em Outubro de 1993, por ocasião do aniversário dos 1200 anos daquela cidade alemã, e resultou da encomenda de uma obra musical apropriada à ocasião e que evocasse acontecimentos históricos, neste caso as sangrentas lutas entre protestantes, católicos e anabaptistas ocorridas nos inícios do século XVI. Depois deste projecto, a união artística entre Corghi e Saramago tem-se mantido em obras de menores dimensões, como a cantata "Lázaro", inspirada em "Evangelho Segundo Jesus Cristo", já estreada no São Carlos, ou "Sotto l'Ombra", para voz recitante e conjunto instrumental, que será apresentada na próxima edição italiana do festival Sete Sóis, Sete Luas, assinalando o aniversário de José Saramago, no dia 17 de Novembro. Qual foi o seu primeiro contacto com a obra de José Saramago?Foi em 1984 através de "Memorial do Convento", pouco depois de este ter sido traduzido e publicado em Itália, com grande sucesso. Senti-me muito identificado com Saramago, com as suas ideias, a sua visão do mundo, a sua grande humanidade, a sua relação com a vida e com a história... A História com "H" maiúsculo e a história com "h" minúsculo. Depois da leitura, tive uma espécie de iluminação: a de também poder habitar a História através da música. Consegui contactar com Saramago e ele acedeu a que o livro fosse convertido num libreto, com Blimunda no centro da trama. Foi a nossa primeira colaboração. A obra estreou no Scala de Milão e foi depois apresentada em Lisboa.O projecto "Divara" nasceu nessa noite, em Lisboa...Exactamente. Nasceu de uma conversa entre mim, José Saramago, Mimma Guastoni (directora da editora Ricordi) e o maestro Will Humburg. Humburg tinha sido recentemente nomeado director da orquestra de Münster. Aproximavam-se as comemorações dos 1200 anos da cidade e a ideia de uma nova ópera para integrar o programa das comemorações surgiu de imediato. Poucos meses depois, Saramago e eu fomos convidados a ir a Münster para ver a cidade e o seu museu. Nessa ocasião, tivemos a ideia de encontrar um argumento de raízes históricas e optámos pelo sanguinário episódio da luta entre protestantes, cristãos e anabaptistas. Estávamos em 1991 e não tínhamos ainda consciência de como este tema era actual. Em 1993, quando a ópera foi estreada, tinha entretanto começado a guerra na ex-Jugoslávia. Creio que a actualidade do tema contribuiu muito para o sucesso de "Divara", que foi reposta em vários teatros: no Festival Ferrara Musica, em Catânia, novamente na Alemanha... Vê-la por fim chegar a Lisboa é uma grande honra - sobretudo poder ver a ópera numa nova produção, o que para um compositor contemporâneo é muito raro e difícil. Estou muito curioso por ver o trabalho de Christop Nel. Na conversa que tive com ele, fiquei fascinado com a sua leitura. É uma leitura mais psicológica, bastante próxima das teses de Saramago do ponto de vista dramatúrgico.Qual a razão da substituição do título original do livro, "In Nomine Dei", por "Divara"?A rainha Divara é uma personagem com pouco peso na história de Münster, mas nós tornámo-la importante. Saramago substituiu o seu eu narrativo pelos olhos desta mulher que vê toda esta violência, os jogos de poder, a destruição, a guerra, a imposição de uma ideologia. Tal como em "Blimunda", tratava-se de habitar a História através de uma personagem feminina, que diz grandes verdades. É muito significativa a frase que ela profere antes de morrer: "Senhor, quando dirigirás directamente a palavra a nós mulheres em vez de falares através da boca dos profetas?" Esta ideia é também um ponto de referência em Saramago. É sempre uma personagem feminina que pode ver... Como Blimunda em "Memorial do Convento", ou Madalena em "Evangelho segundo Jesus Cristo". A escrita de Saramago sugeriu-lhe uma linguagem ou um estilo musical próprio?Um dos aspectos que mais me fascinam em Saramago é a sua forma de habitar a História. Tentei também habitá-la com música, através da utilização de referências de outros tempos, de outros séculos. Uma das personagens que concebi - não sei se o encenador a irá manter...- é a do compositor Franz Liszt. Liszt usou um coral dos anabaptistas na sua monumental Fantasia para órgão ["Ad nos, ad salutarem undam"] e fez uma grande composição sobre o tema. Na minha ópera este tema insere-se em simultâneo com outros corais luteranos, mas também com referências irónicas a outras épocas, por exemplo, a "Don Giovanni" de Mozart, ou a "História do Soldado", de Stravinski. Utilizei estes temas como se fossem pedaços de História, tal como o faz Saramago. Por outro lado, a escrita de Saramago tem um fluir contínuo. Este sugeriu-me uma linguagem musical que fizesse uso de temas que se sobrepõem e que caracterizam as personagens. Não são propriamente "Leitmotivs" wagnerianos, mas estão em constante devir. É também uma linguagem que flui e que me permitiu afastar-me do tipo de ópera que escrevi antes, que tinha uma estrutura com formas fechadas, mais à italiana. No caso de "Divara", optei por um estilo de derivação expressionista, ligado a um teatro muito forte, no qual a palavra tem um papel determinante. Tanto em "Divara" como em "Blimunda", não existem apenas cantores, mas também actores. Que critério usou para seleccionar as personagens que falam e as personagens que cantam?Depois da estreia, muitos jornais escreveram: "As mulheres cantam, os homens falam." Os homens estão todos absorvidos pelas lutas de poder e por isso falam. As mulheres estão submetidas à violência. Para reagir, para exprimir a sua solidariedade, conseguem comunicar mais e melhor através do canto. Divara é a personagem que canta sempre. Só fala no fim, quando está prestes a morrer. No final, enquanto os homens se massacram, ressurgem todas as mulheres que sofreram, e cantam em conjunto: a mulher que reincarna Giuditta - que pensa matar o bispo, mas que afinal é morta - , a última mulher de Jan Van Leiden que é assassinada pelo marido diante de todos, a mãe que viu morrer os filhos... É uma ópera feita de guerra, poder, violência. As mulheres conseguem encontrar uma força de vida que provém da sua solidariedade. Há também uma forte denúncia desta violência. Divara é a única que não renuncia a nenhuma das suas ideias. É morta e torturada, mas não renuncia. Qual o papel da electrónica em "Divara"?É muito importante. Por um lado, permite a utilização de microfones de modo a escutar-se bem as vozes dos actores em qualquer espaço. Por outro, permite usar novos movimentos de som no espaço em conjunto com a orquestra. A sua concretização dá-se em conjunto com a direcção do maestro. É um processo muito complexo, que necessita de muitos técnicos e músicos para a sua realização. Cinco anos depois de Blimunda a tecnologia tinha avançado muito, sobretudo no domínio da electrónica ao vivo, com a criação de sequenciadores que podem funcionar bem com os gestos do maestro e que me permitiram um trabalho mais apurado.A sua obra musical combina a mais avançada tecnologia com as referências ao passado. Como compositor, como encara a dualidade entre tradição e inovação?Vivemos na era da globalização, da comunicação veloz, num mundo que muitos apelidam de "pós-moderno". Tudo o que acontece pode ser imediatamente conhecido noutro lado. A nossa cultura é continuamente posta em confronto com outras culturas, com outras visões do mundo. Tal como Saramago na sua escrita, penso que a minha forma de abordar a linguagem musical está bastante longe daquilo que há anos se chamava "coerência linguística". Ou seja: está longe da convicção de que a evolução da linguagem musical resultava de uma série de mutações que tendiam para o novo, para o que nunca se tinha feito antes. Hoje, isso não é possível. Há muita coisa nova, mas a inovação nas questões de linguagem já não pode colocar-se nos mesmos moldes dos anos posteriores a Darmstadt. Um som novo não significa nada fora de um contexto linguístico ou fora do uso que se lhe quer dar para comunicar. Hoje fala-se em contaminação, em relações com outras culturas. Nos EUA, isto é possível porque as culturas coexistem, convivem umas com as outras. Na Europa, é muito diferente, temos fortes raízes culturais com as quais devemos fazer a nossa história. Há que encontrar soluções de comunicação também no campo da música. Foi por este motivo que escolhi o teatro musical, porque esta é já uma forma contaminada, com vários géneros artísticos dentro. Sou um homem do meu tempo, a minha ambição é comunicar.