Mário Cesariny
São os últimos dias de Abril e Lisboa já anda de alças. No quarto de Mário Cesariny há uma ventoinha ligada, mas é pouco. "O meu leque?", pergunta o poeta, sentado na cama. Procura em volta, sem largar a boquilha com o cigarro aceso. Não pára de fumar. Nos últimos dois anos e meio houve muito uma câmara neste quarto, e Cesariny deu-se bem com ela. Chegou até a pegar-lhe, claro. Uma roda de zooms pelo quarto, coisa de gaiato.O filme que daí resultou estreia segunda-feira na Cinemateca Portuguesa. Chama-se "Autografia" e é o primeiro documentário alguma vez feito em torno de Mário Cesariny. O autor, Miguel Gonçalves Mendes, tinha 23 anos e nenhum orçamento quando aqui chegou com a câmara pela primeira vez. Ainda antes de montar o epílogo, mostrou o filme ao poeta."Gostei de tudo", diz Cesariny, agora que já encontrou o leque. "O Miguel sabe o que é a poesia, sabe o que é um poeta, e sabe, talvez como poucos, transmitir isso ao cinema."Para ir à estreia na Cinemateca, Cesariny já pediu um par de binóculos, dada a grandeza do ecrã. "Com pés de três metros e caras de cinco metros, não consigo ver cinema. Os binóculos são para pôr ao contrário."E mais sobre o filme não diz, porque o que há a dizer "está lá." Portanto fala dos cafés que já não existem em Lisboa, dos barcos que já não chegam a Lisboa, e de como deixar Lisboa. Nesta súbita tarde de Verão, por exemplo, hesita entre Marraquexe, São Petersburgo e Açores. Em Agosto faz 81 anos."Autografia" - o poema de Mário Cesariny, no livro "Pena Capital" (Assírio & Alvim) - abre com estes versos: "sou um homem / um poeta / uma máquina de passar vidro colorido / um copo uma pedra / uma pedra configurada / um avião que sobe levando-te nos seus braços". "Autografia" - o filme em três actos de Miguel Mendes - abre com estes mesmos versos, ditos em "off", sobre o ecrã branco. Quando as imagens começam, há um homem numa janela, visto do céu, como de um avião que tivesse subido. Está longe o suficiente para o podermos só adivinhar.Na intensa cor da imagem seguinte, a pele desse homem atinge-nos em cheio. Está tão perto que vemos os poros, as pregas, o suor. É o corpo de Mário Cesariny, do lado de lá da janela, dentro do quarto.I Acto."Gostava de ter daquelas mortes boas, em que uma pessoa se deita para dormir e nunca mais acorda", diz Cesariny. O envelhecimento do corpo, "a morte a trabalhar, é que é chato". Escrever e pintar ("agora, sobretudo pintar") são razões para estar vivo. E há outra: "A alegria de poder acompanhar a minha irmã [Henriette, que com ele partilha a casa]." Se houvesse eternidade, "era uma coisa, mas não há". Para que é que a vida serve? "Para foder, que é muito bom. Para amar. E para morrer."Em câmara muito lenta atravessamos a ponte sobre o Tejo, com nevoeiro, como se não existisse mais nada. Vemos fotografias antigas e depois Cesariny prodigiosamente empoleirado numa escada de ferro velho, que parece segura por nada. Um perigo, e ele firme, a espreitar o mundo.É um cemitério naval na margem sul. Entre a ruína dos barcos e o quarto, Cesariny há-de dizer isto sobre as sessões em que o aplaudem: "E depois deixam-me ir sozinho para casa." Há-de dizer: "Sou um poeta bastante sofrível numa época em que o tecto está muito baixo." Uma época sem Anteros, Pessanhas ou Pessoas em que a sua poesia talvez se diferencie por ser "o miau do gato a quem apertam demais o rabo", e não um "miau, miau". E há-de dizer porque parou: "A poesia foi um fogo muito grande que ardeu. Depois ficaram as cinzas. Não sou capaz de fazer versos porque sim. Acabou, e não julgues que não tenho saudades desse tempo em que andava pelos cafés, pela rua. Nunca escrevi um poema em casa." Não sente necessidade de escrever?, pergunta a voz que não se vê. "Nenhuma. Para quê? A quem?"O poeta tem agora um chapéu com uma pinha e deambula pelo cais fantasma. "Eu há muito tempo, talvez, que não estou cá." A banda de som traz uma guerra com cornetins e tiroteio. Cesariny, equilibrado entre ferros à beira da água, pega num velho telefone, marca um número, e vocifera: "Para a puta que os pariu!" Acto II.Mais fotos antigas, a Paixão Segundo São Mateus de Bach, um leão à solta por Lisboa. Vamos lá, ao velho atelier da Calçada do Monte, ao miradouro de onde Lisboa até parece uma cidade que afinal ainda não acabou. Mas onde estão os cafés? Sobra algum? Este? A câmara filma candelabros e mesas, e depois Cesariny sentado numa cadeira à porta da casa-de-banho. O salão, digamos, está ocupado com almoços. "Entre, entre", orienta Cesariny da sua cadeira para um cliente que depara com a câmara. O Café Gelo das tertúlias só existe a branco e preto nesta fotografia, agora. E "o surrealismo foi transformado em museu". O obituário é extenso. Cesariny lê a lista dos mortos num cenário infernal de néons vermelhos. E de novo no quarto, falará de amor. "É a única coisa que há para acreditar. O único contacto que temos com o sagrado. As igrejas apanharam o sagrado e fizeram dele uma coisa muito triste, quando não cruel. O amor é o que nos resta do sagrado."O amor, tal como a Cesariny aconteceu, homossexual, é "um desmesurado desejo de amizade", em que "o outro é um espelho sem o qual não nos vemos, não existimos". Talvez se possa morrer de amor, como "também se pode morrer de falta de amor". A ele, que "estava cheio de literatura", fazia-lhe falta "alguém com a pureza do mar - a pureza e a tempestade".Houve então essa história aos 20 anos, talvez a mais funda de todas, com "alguém do Norte, que é conhecido no meio literário". Vêmo-los a ambos em fotografias sem rosto. "Ele quis matar-me. Embebedou-se, mas não conseguiu. Disse-me no dia seguinte. É bonito, não é?"Vemos a caligrafia azul (Ofir, Abril, 1950) desse homem que lhe escreveu um poema numa carta que "foi parar à PIDE". A história acabou aí. "Então saí para a rua e diverti-me à brava com a marinha portuguesa quase toda."Uma nebulosa é projectada na parede do quarto, e sobre esse fundo dança um par de silhuetas, o poeta e um marinheiro.III acto.Na Feira Popular Cesariny anda de carrossel, canta, mira-se nos espelhos que esticam e encolhem. Há uma roda com um menino e uma menina. E sentamo-nos na outra casa de Mário e Henriette, mais perto do mar, a ouvi-los conversar. Sobre a homossexualidade, a infância, esse pai que "era um homem das cavernas", o industrial à espera de ter um filho industrial, que quando ele expôs a primeira vez se admirou ("Tu afinal trabalhas"). E há coisas que não são ditas, porque "certas coisas são muito íntimas". Ao som de Carlos Paredes, voltamos a Lisboa, ao quarto. O poeta olha para o país que tem. "Não há nenhum país à espera de um rei quatrocentos anos. É um povo menino, um povo criança, mas depois não dá para ser um país como a Alemanha." Pega na câmara. "É um país à beira-mar, não temos muitas hipóteses, então sonhamos." O sonho dele "até aos 50 anos" era que voava. "E era uma coisa tão boa. Era o espaço puro." Paredes continua a tocar, a câmara está no céu, vem a voar desde o Terreiro do Paço (Baixa, Avenida da Liberdade, Parque Eduardo VII, Praça de Espanha) até ter à vista aquela janela onde no princípio avistámos um homem. Ele está lá. E está a olhar para nós. Ainda haverá um epílogo, e o ecrã em branco, de novo, com o poema tomado como "mote" do filme: "E para dizer-te tudo / dir-te-ei que aos meus vinte e cinco anos de existência solar estou / em franca ascensão para ti".Vinte e cinco anos é a idade que Miguel Mendes tem agora. Nasceu na Covilhã, passou a adolescência em Olhão, veio estudar para Lisboa, indeciso entre história (variante arqueologia, variante subaquática) e cinema. Venceu história, mas não por muito tempo. Mudou para relações internacionais, no ISCSP, onde participou no grupo de teatro. Aí conheceu actores como Paula Sá Nogueira, da Cão Solteiro, companhia onde veio a fazer produção. Há três anos decidiu ir para a Escola de Cinema. Está a acabar o curso. Filmou entretanto o primeiro documentário de uma trilogia sobre a Galiza, "D. Nieves", que foi exibido na Cinemateca, e a ficção "A Batalha dos Três Reis", sempre sem financiamentos. Para arranjar dinheiro para esta última, renogociou o empréstimo da sua casa, e assim foi para Marrocos, apenas com o dinheiro suficiente para pagar cassetes e gasolina e refeições à equipa (os actores são Rita Loureiro, João Cabral e Paulo Pinto) - falta-lhe uma semana de filmagens em Lisboa e distribuir o filme; continua sem apoios.Conheceu Cesariny nos tempos do ISCSP, por causa de uma peça sobre poemas dele, incluindo "Autografia". "Lembro-me de pensar: 'este poema diz tudo o que eu queria dizer'." Foi a casa do poeta, pedir-lhe que o gravasse para o espectáculo. "Houve uma empatia imediata."Quando na Escola de Cinema teve de fazer um trabalho de retrato, escolheu Cesariny. O projecto acabou por não ir para a frente, mas Miguel Mendes recuperou-o para uma ideia mais ambiciosa, extra escola. Cesariny concordou. Henriette também - Miguel levava-lhe margaridas brancas."Todos os fins de semana ia lá a casa, com câmara emprestada ou sem câmara." Quando arranjou dinheiro para a ficção de Marrocos, aplicou parte numa câmara digital, e assim, sem dinheiro, foi continuando, com amigos a ajudarem no som, na câmara, na montagem. O que lhe saiu mais caro (90 contos) foi o aluguer (por 50 minutos) do helicóptero mais barato que havia, para oferecer imagens de um voo a Cesariny. "Não me interesssava nada fazer um filme sobre a pintura e a poesia. A Assírio e os historiadores de arte terão o seu papel aí. Queria registar o que ele sentia, o que nos determina, o que um tempo e um espaço nos fazem." Começando pela morte e indo até à infância, numa estrutura circular, que também acompanha as estações do ano, e apanha a cidade que há e já não há. O início, com a câmara tão perto da pele, "é um esquartejamento, o que toda a gente lhe faz", o corpo "decomposto" para no fim "chegar ao corpo inteiro".As perguntas e as cenas que estavam escritas foram inspiradas no poema. Depois houve o que Cesariny improvisou, como a escada, o telefone ou a escotilha, no cemitério dos barcos. "Ele é um performer nato. E tem um sentido impressionante do tempo, do texto, do silêncio." O poeta abriu-lhe o quarto, os diários, as fotografias, e literalmente despiu-se até onde quis. "Eu próprio não estou certo do limite. Ele entregou-se absolutamente. A única coisa que me deixou tranquilo foi ele ter gostado." Henriette faleceu recentemente, não chegou a ver-se no filme a dizer: "Eu sou anti-artista e ele é um santo irmão."Miguel Mendes tem 20 horas gravadas com Mário Cesariny. Está a pensar num "Autografia 2", e em filmar um argumento que Mário Cesariny escreveu nos anos 50. Um argumento sobre... "É sobre o quê, Miguel?", pergunta Cesariny na tarde da ventoinha e do leque em que o visitámos. "Sobre um homem que não se encontra", tenta Miguel. Cesariny acena com a cabeça.