De "gay" a "queer"
Na passagem da problemática "gay" à problemática "queer", avançamos de uma situação em que, por motivos estratégicos extremamente compreensíveis, mas teoricamente enredantes, se afirmava a identidade "gay" e lésbica, para uma nova situação em que a identidade só é pensável como uma forma de relação com a não-identidade.
Temos, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, o primeiro curso livre sobre "Estudos Gay, Lésbicos e Queer", excelentemente organizado por Fernando Cascais. Mas temos também, no âmbito da SIC Radical, os programas de "TV Queer". E contudo a palavra permanece para muitos com o seu sentido mais tradicional: "estranho, esquisito, excêntrico, singular". Mesmo que os dicionários indiquem que coloquialmente pode designar "homossexual".Como surgiu esta significação complementar? Façamos um pouco a história lexical. O termo "homossexual" surge em 1869 com o médico suíço Karoly Maria Benkert, mas o seu uso começou a generalizar-se em 1890 com o conhecido sexólogo Havelock Ellis. Quanto a "gay" era um termo de gíria sem valor específico até que, no ambiente dos movimentos libertadores dos anos 60, foi reabilitado e promovido a movimento "social". Alguns reagiram a esta usurpação de um vocábulo supostamente "jovial e inocente" para terrenos que pareciam distantes destas virtudes.O que é curioso é que o uso do termo "queer" nesta acepção específica parece ser anterior a "gay". Segundo alguns historiadores, ele surge nas primeiras décadas do século passado quando determinados grupos homossexuais ingleses se designaram a si próprios desse modo. Se a palavra reaparece no início dos anos 90, é porque se sentiu necessidade de encontrar um termo para falar de uma realidade em transformação. E a verdade é que o termo teve um êxito inesperado, talvez porque todos tinham consciência de que os modelos tradicionais estavam em ruptura e se tornava necessário desenvolver uma outra forma de pensar o sexual.Neste plano, devemos encontrar pelo menos três referências essenciais. Em primeiro lugar, e com um relevo que não pode ser negligenciado, a importância da SIDA. Por um lado, houve tendência para circunscrever os efeitos da epidemia a grupos de risco dominados pelo imaginário da homossexualidade. Mas, por outro lado, como esses grupos de risco ultrapassavam as fronteiras da homossexualidade clássica (e incluíam drogados, prostituição, pais e amigos de vítimas, transexuais, etc.), verificou-se uma vacilação de identidades. Por fim, as formas de defesa em torno de práticas de "safe-sex", levaram também a um esbater de fronteiras. Deste modo se favorecia objectivamente uma reformulação da própria noção de "identidade" que até aí tendia a dominar rigidamente os estudos "gay e lésbicos". Em segundo lugar, é imprescindível referir a importância da obra de Michel Foucault, e em particular dos seus últimos livros e entrevistas. Em terceiro lugar, no âmbito da reflexão dita "pós-estruturalista", encontramos nomes importantes que contribuem para novas problemáticas teoricamente estimulantes: é o caso de Judith Butler (de que é necessário referir "Gender Trouble. Feminism and the Subversion of Identity", Routledge, 1999), de Leo Bersani ou de David Halperin (autor de "Saint Foucault Towards a Gay Hagiography", Oxford University Press, 1995).Na perspectiva de Michel Foucault, é necessário inventar novas modalidades relacionais e afectivas que ultrapassem o estrito binarismo masculino/feminino e os modelos obsessivos e enraizados da sexualidade como "fusão amorosa de identidades" (segundo o modelo romântico predominantemente heterossexual) ou como "puro encontro sexual" (segundo o modelo assumido e praticado predominantemente pelos homossexuais). Para Foucault, precisamos de pensar relações "que nem sequer conseguimos imaginar hoje como poderão ser". Isto significa - na linha de uma fala de conotações deleuzianas - que "ser homossexual é devir homossexual" tal como "ser heterossexual é devir heterossexual" (sem que nunca se saiba qual o termo de chegada de um processo de devir).Para Foucault, se queremos colocar deste modo o problema, precisamos de sublinhar dois pontos prévios: a) que, embora tenha desde sempre havido relações homossexuais (apesar de a antropologia nos mostrar que as formas de organização social da homossexualidade podem ser extremamente diferentes e complexas), a homossexualidade como entidade cultural é relativamente recente; b) nesta perspectiva, a homossexualidade não deve ser vista apenas como uma prática sexual, mas como um estilo de vida e uma forma de cultura e de produção de discurso.Devemos sublinhar, portanto, a homossexualidade como um dispositivo relacional. A contribuição de Leo Bersani neste plano vai ser extremamente interessante: ele sublinha que só podemos entender o relacionar e dele fazer uma genealogia, se formos capazes de conceber um não-relacional. E aqui vai mesmo buscar exemplos à pintura: as manchas monocromáticas de Rothko ou a brancura indiferenciada nalguns quadros de Turner são figuras do não-relacional (que se caracterizam pela eliminação da figura).Donde, se tudo é relação, só podemos entender a relação a partir da hipótese de uma não-relação. O que Leo Bersani pretende é sublinhar três pontos: primeiro, que o pensamento "queer" exige na sua renovação uma mobilização da psicanálise; segundo, que essa psicanálise não pode ser uma psicanálise cicatrizante que procure ajustar o sujeito ao mundo através da função apaziguadora da "relação de objecto"; terceiro, que a única psicanálise que não "pastoraliza" o desejo é aquela que dá um lugar teórico ao não-relacional.Neste plano, Bersani mostra-se crítico em relação a modelos que postulem um desenvolvimento programado e normativo do desejo (tal como se pode encontrar nos "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" de Freud). O que importa é des-hierarquizar este processo demasiado bem organizado, e nesse plano a hipótese do não-relacional funciona como um operador privilegiado. Se o sujeito tende a relacionar-se com o objecto, esse objecto do desejo será sempre obscuro, na medida em que resiste, na medida em que nunca se dá como pura presença, mas sempre como uma presença sobre um fundo de ausência (isto é, como objecto parcial, como repetida metonímia), na medida em que o desejo nunca coincide com a mera necessidade biológica, mas a utiliza apenas como suporte dos seus itinerários de demanda.Leo Bersani tenderá neste plano a avançar com formulações algo provocatórias. Partindo da convicção de que o objecto é sempre um pretexto para um desejo que se serve do outro apenas para se reencontrar a si mesmo, Leo Bersani definirá o casamento monogâmico como "uma ficção relacional a partir de um gozo solipsista". E esta ficção relacional é tanto mais ficção quanto o objectivo último do processo é o sujeito apropriar-se do outro como objecto de desejo.Na problemática de Leo Bersani, é preciso que na relação sexual se verifique "uma derrota do sujeito" para que o outro se institua na sua alteridade não apropriável (isto é, na sua "estranheza") e para que o próprio sujeito não se conforte num mero circuito de si a si mesmo, mas se presdisponha a deixar-se invadir pelo fundo de não-identidade sobre o qual a sua identidade se constrói.Isto implica várias coisas. Por um lado, que se aceite que, nos nossos dias, a situação da homossexualidade lhe permite uma maior abertura teórica para a reformulação das novas coreografias relacionais. Por outro lado, que se avance no sentido de despsicologizar a relação de desejo, reconduzindo-a para um plano em que é o próprio ser que está em jogo. Em terceiro lugar, que, neste quadro de pensamento, se reinscreva a conhecida afirmação lacaniana de que "não há relação sexual (sublinhemos: relação)", o que não significa mais do que reconhecer que no interior da relação há sempre uma não-relação, uma zona informe, uma caixa negra - que é a marca da tragicidade incontornável no cerne de uma sociedade que cultiva a sua frustração em torno de uma reiterada ideologia da comunicação generalizada. Na passagem da problemática "gay" à problemática "queer", avançamos de uma situação em que, por motivos estratégicos extremamente compreensíveis, mas teoricamente enredantes, se afirmava a identidade "gay" e lésbica, para uma nova situação em que a identidade só é pensável como uma forma de relação com a não-identidade: ser "queer" é estranho não apenas porque a palavra se define pela ideia de estranheza como ainda pelo facto de a palavra "queer" resistir a qualquer tentativa de definição - afirmando-se como a não-definição que sustenta o quadro provisório e instável das definições sexuais contemporâneas.