O Estado, os liberais e o motor da inovação
Ao contrário do que sugere Paes Mamede, muitos liberais reservam ao Estado um importantíssimo papel que vai muito para além das funções de soberania. O que dizem é que não deve planificar a economia.
Gosto de ler Ricardo Paes Mamede no PÚBLICO, sobretudo quando não estou de acordo com ele.
No texto que publicou a 6 de janeiro, ataca os liberais portugueses por estudarem pouco e repetirem ideias feitas sobre os malefícios da intervenção do Estado. Afirma que os liberais são céticos quanto aos benefícios de políticas públicas económicas seletivas que priorizem áreas produtivas em detrimento de outras. E fazem-no sem pensar.
A razão principal, explica, sustenta-se no facto de os liberais não conseguirem vislumbrar qualquer utilidade nas ações do Estado para além daquelas que “assegurem a justiça, a segurança e algumas infraestruturas e serviços básicos”. Vai mais longe, sugerindo que os liberais estudam tão pouco que ignoram o pensamento de economistas como o alemão Albert Hirschman, tão relevante na defesa da ideia de que a transformação estrutural do tecido produtivo exige mecanismos de coordenação que só políticas estatais estratégicas asseguram.
Julgo que Paes Mamede começou a manifestar esta preocupação nos seus artigos depois de o socialista Pedro Nuno Santos ser atacado por defender a ideia de que cabe ao Estado apostar em empresas e setores com capacidade de arrastamento da economia – e aqui entra o conceito de Estado Desenvolvimentista a que Paes Mamede faz referência, dando o exemplo do Japão.
Já tive oportunidade de rebater esta ideia num artigo que lhe dirigi há um ano, também neste jornal, explicando o que me parecia estar em causa nesse exemplo e sublinhando que não acredito nas virtudes de ter ministros a decidir a que empresas privadas dirigir o investimento público. Falo de dirigir no sentido de ser o Estado o único de mãos no volante, mesmo que precise de “privados” para completar essa tarefa, como produtores de motores, pneus ou mesmo das autoestradas em que circula.
Porém, segundo Paes Mamede, a alternativa liberal a este Estado dirigista é aquela em que os condutores só surgem numa economia porque, na livre dinâmica de mercado, um dia alguém “privado” se lembrou de o fazer. Nesta visão, percebe-se que os riscos seriam o de desenvolver uma economia monopolista em que as pessoas só podiam deslocar-se coletivamente nos autocarros do privado.
Mas as coisas não são assim tão simples. Compreendo que Paes Mamede não consiga explicar com rigor tudo o que pretende defender num artigo de jornal, mas os custos dessa simplificação são iguais para quem procura responder-lhe. Recorrendo a Hirschman, um dos economistas a que se agarra no artigo, lembro a sua teoria do “princípio da mão escondida”, segundo o qual o alemão argumenta que é a ignorância sobre o que há a fazer que é o verdadeiro “motor” da inovação na economia. Enquanto liberal, não me tenho cansado de defender esta mesma ideia, sublinhando que é o facto de não se saber o caminho correto que deve, justamente, fazer o Estado resistir à tentação de o tentar apontar.
Recorro neste jogo de economistas ao "Nobel" Paul Romer, que procurou explicar como é a partir dessa maravilha do desconhecido que se devem procurar caminhos futuros, argumentando que o Estado deve criar aquilo a que chama “charter cities” (“cidades foral”), ou seja, cidades livres onde os habitantes são livres de atuar como bem entendem. Em seguida, o mesmo Estado deve selecionar o que melhor funcionar e aplicar isso mesmo ao resto da sociedade.
Percebe-se o ponto que tento enfatizar: ao contrário do que sugere Paes Mamede, muitos liberais não abdicam de reservar ao Estado um importantíssimo papel que vai muito para além das funções de soberania. O que dizem é que não deve ser o Estado a planificar a economia. Voltando a Hirschman: este diz que só quando somos confrontados com o desconhecido conseguimos, passo a passo, ir encontrando os melhores caminhos (a tal mão escondida). Ora, o que um liberal defende é que é melhor muitas mãos escondidas a tentar, em simultâneo, resolver muitos desafios, do que ter apenas a mão do Estado, sozinha, a tentar solucionar todos.
Numa coisa estou de acordo com Paes Mamede: seria bom que liberais e não liberais elevassem a discussão, como julgo que ambos procuramos fazer neste jornal.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico