Hoje, a Gronelândia; amanhã, os Açores?
Em Portugal, temos ignorado o Árctico. Ainda não percebemos que num mundo em degelo as dinâmicas geopolíticas do Árctico e do Atlântico Norte estarão mais interligadas do que nunca.
Depois de Donald Trump manifestar o desejo de integrar a ilha dinamarquesa da Gronelândia nos EUA, têm-me perguntado se o presidente-eleito não poderá dizer algo semelhante sobre os Açores. A resposta é sim. E não apenas porque nunca sabemos o que esperar de Trump.
Esta semana assinala-se o décimo aniversário do anúncio da retirada parcial de forças norte-americanas da Base das Lajes, na Ilha Terceira. Muita coisa mudou desde então. Em 2015, os EUA acreditavam que a Rússia não representava uma verdadeira ameaça à ordem internacional. A secretária de Estado de Obama, Hillary Clinton, anunciara no final de 2011 que o foco dos EUA seria a Ásia-Pacífico e a resposta à ascensão da China. Vladimir Putin anexou a Crimeia em 2014, mas foi preciso a invasão de larga escala da Ucrânia em 2022 para os EUA e as maiores potências europeias olharem para a Rússia como uma ameaça séria.
A análise geopolítica também se atrasou em relação às mudanças profundas no Árctico, região que tem aquecido a um ritmo várias vezes superior ao do resto do planeta. O degelo está a facilitar o acesso a recursos, não só reduzindo os obstáculos técnicos à sua exploração, como facilitando o transporte até aos consumidores.
Isto porque o desaparecimento do gelo marinho facilita a navegação de rotas marítimas que ligam o Pacífico ao Atlântico mais depressa que os percursos tradicionais e evitando pontos de estrangulamento de tráfego marítimo como o Mar Vermelho, que tanto tem sofrido com os ataques dos rebeldes houthi.
A Rússia fez uma aposta clara na Rota do Mar do Norte, que utiliza cada vez mais para escoar gás natural liquefeito (GNL) e petróleo. O controlo russo da rota é assegurado pela maior e mais capaz frota de navios quebra-gelo do mundo e pela insistência em que os navios de outros Estados obtenham permissão para utilizá-la, algo discutível à luz do direito marítimo.
O desejo russo de controlar a rota estará também ligado à China, que apesar de aliada hoje, pode não o ser amanhã. Além de ter uma marinha cada vez mais possante, a China está a desenvolver a sua própria frota de quebra-gelo e identifica-se como um “Estado próximo do Árctico”.
Em 2019, quando Trump falou em “comprar” a Gronelândia pela primeira vez, focou-se na exploração de recursos. Agora, fala em “razões de segurança nacional” e na atividade de navios russos e chineses. A próxima administração entende a ameaça russa no Árctico como uma continuação da ameaça chinesa aos interesses norte-americanos.
É aqui que entram os Açores. Durante a Guerra Fria, a Base das Lajes e outras infraestruturas açorianas desempenharam duas grandes funções. A mais vísivel foi o apoio logístico aos EUA no transporte de equipamento militar e tropas para a Europa, Norte de África e Médio Oriente. Menos visível, mas não menos importante, foi o papel dos Açores na vigilância marítima.
Esta tarefa, feita em parte com aviões de patrulha, exigia monitorizar a coluna de água para vigiar os submarinos soviéticos a sul dos estreitos entre a Gronelândia, a Islândia e o Reino Unido. Estes estreitos, conhecidos como “GIUK gap”, são a interface entre Atlântico e Árctico. O sucesso em impedir que os submarinos soviéticos passassem esta barreira foi crucial para a capitulação da União Soviética em 1989.
Hoje, os submarinos russos voltaram a surgir como um desafio no Atlântico, voltando a focar as atenções da NATO, EUA e UE no GIUK gap. É também isso que explica que os EUA tenham lançado no ano passado um concurso para dotar a Base das Lajes da capacidade para prestar apoio em permanência às missões dos aviões de patrulha anti-submarina P8 Poseidon.
Em Portugal, temos ignorado o Árctico. Nunca nos candidatámos, por exemplo, a integrar o Conselho do Árctico como membro observador, como fez Espanha. Ainda não percebemos que num mundo em degelo as dinâmicas geopolíticas do Árctico e do Atlântico Norte estarão mais interligadas do que nunca. Se queremos ser ouvidos no que respeita à segurança atlântica, teremos de investir mais capital político, diplomático e, sim, financeiro, nestas matérias. Se Trump nos vier falar dos Açores, saberemos que já vamos tarde.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico