A magia do espírito natalício... e a nossa cumplicidade num genocídio

Eu dava a minha vida para que Portugal fizesse o que legal e moralmente se exige, e tenho a “certeza” de que Jesus também o faria. O Natal, se falasse, pedia para se acabar com o genocídio em Gaza.

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Mesmo sendo ateu, sempre adorei o Natal. Nós tornamo-nos pessoas diferentes, percebemos que as outras pessoas também estão diferentes, mais sensíveis, mais emotivas, com o coração mais aberto ao próximo, mesmo se desconhecido, e mais afáveis em pequenos e grande gestos.

Ao mesmo tempo, penso na verdadeira história de Jesus, a pessoa mais influente de sempre na humanidade – conquista essa, claro, confabulada por infinitos homens e mulheres ao longo de dois milénios, mas também, e acima de tudo, porque tudo o que sabemos da pessoa que ele foi é brutalmente inspirador, uma pessoa extremamente bondosa, abnegada, que lutou por: igualdade, empatia por quem sofre, tolerância pelos diferentes, perdão a quem nos fez mal (para mim uma das mensagens mais bonitas do cristianismo), e amor, muito, muito amor, como sendo, sem dúvida, a grande cura para todos os males, dedicada ao outro até ao último folgo.

Belém, Palestina ou Israel?

Jesus nasceu em Belém e morreu em Jerusalém, são cidades reconhecidas pela ONU e por toda a comunidade internacional como sendo Palestina. Só Israel afirma, age, e obriga quem lá vai, a dizer que aquilo não é Palestina, mas sim Israel. Ninguém me contou. Aconteceu-me a mim. Na segurança do aeroporto à saída, em Tel Aviv, quando me perguntaram onde eu estive, e eu nomeei algumas cidades da Cisjordânia, como sendo Palestina. Obrigaram-me, ao ponto que se eu me recusasse a retirar a palavra “Palestina”, não me deixavam passar. Isto é retórica genocida.

Há cerca de 2 mil milhões de pessoas, em cerca de 160 países, que vivem num estado de alegria, família, harmonia, amor, bondade e compaixão, ao festejar o Natal. Mas aqueles que vivem onde nasceu, viveu e morreu Jesus estão a ser vítimas de genocídio.

O Pai Natal ou uma bomba?

Nada mais bonito no Natal do que ver o brilho nos olhos duma criança, quando pensa no Pai Natal a descer pela chaminé com uma alegria infinita, mesmo antes da explosão de emoções quando abre o tão sonhado presente.

Em Gaza, já foram assassinadas mais de 100.000 crianças (estimativas, ninguém sabe o número ao certo, o que também prova a crueldade desta realidade), onde a faixa etária em que há mais mortos é dos 5 aos 9 anos. Um recente estudo diz que 50% das crianças em Gaza desejam morrer pelo trauma infligido por Israel. Nunca tantas crianças tinham morrido em tão pouco tempo. Cerca de uma em cada dez crianças tem pelo menos um membro amputado, e nunca tantas crianças tinham ficado órfãs ou incapacitadas para sempre como nestes 14 meses. Já se viu conferências de imprensa feitas por crianças a dizer que as suas vidas contam. Não percebemos que podiam ser os nossos filhos, e são “estranhamente” igualmente humanos como nós?

Jantares de empresa ou "business as usual"?

Os jantares de Natal no trabalho também têm o seu quê de fantástico. O formalismo desaparece. A hierarquia transforma-se em abraços de igualdade. O chefe pode ficar à conversa, com o empregado da limpeza e perceberem que têm imensos gostos em comum. E claro, os copos levam a situações caricatas e ao quebrar do gelo, que faz com que todos os profissionais deixem cair a máscara do trabalho, para se mostrarem através das emoções, quem na realidade são. Isto é bonito.

Nunca como em Gaza morreram tantos jornalistas numa guerra, tantos médicos, profissionais de saúde no geral, trabalhadores humanitários… e engenheiros, professores, advogados, ou seja, civis, e assim se destrói todo o tecido humano que faz funcionar uma sociedade. Netanyahu prometeu que iria reduzir Gaza a escombros, e assim o fez, sendo óbvio que é o maior autor moral deste genocídio, como comprova o mandato de captura do Tribunal Criminal Internacional, e o que é que os nossos governantes disseram sobre isso? Nada. Silêncio cúmplice e assim se desprezam as leis, abrindo precedentes irreversíveis. Sanções para a Rússia? Óbvio que sim. E para Israel que matou infinitamente mais civis do que a Rússia? Nada, “business as usual”.

Amizade ou ódio?

Os jantares de amigos para muitos batem mais forte no coração do que o próprio Natal da família. Os irmãos e irmãs que escolhemos para a vida, e que às vezes a vida os fez mudar de cidade ou de país, encontram-se no Natal, para os abraços mais fortes e mais genuínos sempre carregados de palavras de amor, porque a amizade é mesmo um amor maior... e é tão bom. A amizade é a conquista maior do ser, humano.

Este é o genocídio mais comprovado e documentado da história da humanidade. Fome, sede e privação de cuidados de saúde, como armas de guerra é revoltante. Ajuda humanitária que para além de entrar a conta-gotas já foi comprovadamente usada com isco para depois ser bombardeada por Israel. E o que é mesmo repugnante, é que qualquer crítica que se faça ao regime político de Netanyahu é silenciada, é “justificada”, é desacreditada e contra-atacada com o rótulo cobarde e falso de “anti-semitismo", mesmo que não se toque na religião, o que é em si, um enorme desrespeito e até descrédito para o verdadeiro anti-semitismo, cujo passado todos conhecemos, e que infelizmente também ainda existe no presente e tem que ser combatido, assim como a islamofobia.

A família é a família. Não há nada que substitua o poder dos laços de sangue que se sentem mais fortes do que nunca nestes dias. Os sobrinhos ou netos que ainda não tinham sido conhecidos por todos, a carinhosa revisão do ano, os sonhos e os desejos de felicidade eterna, a vontade genuína das pessoas entre família e fora de família de serem pessoas melhores, mais solidárias, mais empáticas e não há nada mais bonito que isso, que é visto “aqui e ali” ao longo do ano, mas multiplicado ao seu expoente máximo, no Natal.

Falar ou calar?

Quem é que falta reconhecer que as evidências apontam para o maior dos crimes contra a humanidade, o genocídio, está ser cometido por Israel contra o povo palestiniano? A Amnistia Internacional já o fez, todas as Organizações Humanitárias que estão no terreno o dizem, a ONU também já deixou bem claro… nem o Papa Francisco não teve medo de usar a palavra genocídio! Quem é que é incapaz de criticar Israel com as palavras todas? Nós, portugueses, o que faz de nós cúmplice dum genocídio. A história vai-nos julgar. Os livros de história vão ser escritos, e lá vai constar: “Portugal calou-se perante um genocídio gritantemente cruel!” Todos os filhos e netos de quem não teve coragem de criticar ferozmente Israel, vão ter vergonha dos seus familiares cobardes e cúmplices.

O Natal é mesmo um período emocionalmente muito especial, e este ano, enquanto uns se enjoam em rabanadas, outros morrem à fome. E nas 24 horas que separam a minha escrita, e a publicação deste texto, mais 60 crianças serão mortas ou gravemente feridas.

O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, o primeiro-ministro, Luís Montenegro, e o ministro dos Negócios Estrangeiros, Paulo Rangel, podem até fazer mandatos incríveis, mas, ao não reconhecerem o Estado da Palestina, ao não terem nenhum gesto de pesar e respeito pelas vítimas dum genocídio, e ao não sancionar, e criticar Israel com a dureza que os seus crimes obrigam, vão ficar para a história como cúmplices dum genocídio que passa em directo na televisão.

Eu dava a minha vida para que Portugal fizesse o que legal e moralmente se exige, e tenho a “certeza” de que Jesus, se fosse vivo, também o faria. O Natal, se falasse, pedia para se acabar com o genocídio. E mais do que nunca, é importante que se fale, porque Israel, algo também sem precedentes, proíbe a entrada de jornalistas em Gaza.

Todas as vozes contam, e quem está calado ou é ignorante ou é cúmplice, e toda a humanidade vai pagar um preço elevadíssimo porque Portugal e o Ocidente decidiram dar o OK a um genocídio. As consequências serão gravíssimas e eternas.

Aproveitem as festas, mas tenham coração e coragem nas palavras e nos actos. Todos contam.

As crónicas de Gustavo Carona são a favor dos Médicos sem Fronteiras

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