O factor Kid Rock
Foi dos primeiros artistas a apoiar Trump em 2016 e em 2024, mas antes apoiara Bill Clinton e Barack Obama. Estas opções têm de ser compreendidas por quem gere campanhas.
Nos últimos dias da campanha presidencial de 2016, Hillary Clinton, com sondagens favoráveis e um entusiasmo esfuziante, participou em inúmeros comícios eleitorais na companhia de figuras estrelares como Bruce Springsteen, Beyoncé, Bon Jovi, Katy Perry, Lady Gaga, entre outras do hip hop ao pop/rock. Reuniu o apoio maciço daquilo que podia ser visto como uma espécie de establishment da indústria musical. Recordo-me desses momentos de campanha e, refletindo sobre estratégias eleitorais, lembro-me de comentar que faltava ali algum country ou christian rock.
Na altura, a imagem pareceu-me apropriada para exemplificar a leitura que fizera da estratégia de campanha, algo sobranceira e displicente face a um Donald Trump desprezado e desvalorizado politicamente pela rival e, diga-se, pela maioria da elite democrata americana, incluindo os principais meios de comunicação social. Para o Partido Democrata, perspectivava-se a perpetuação de mais uma dinastia política americana: os Clinton. Hillary seria o elo entre Bill e Chelsea. Hoje, poucos se recordarão, mas era também isso que estava em causa nas presidenciais de 2016.
Ofuscados pelas sondagens e por uma ilusória dinâmica de vitória, a equipa democrata não soube ler e sentir o terreno, acomodando-se a uma estratégia liderada pelo director de campanha Robby Mook, que o The Guardian, compreensivelmente, chegou a qualificar como"a political nerd who lives and dies by data" [Um nerd político que só vive em função de dados].
Um ano depois da vitória de Trump, o mesmo The Guardian sintetizava bem o desfasamento de percepção que existia entre quase toda a bolha político-mediática e a dinâmica do eleitorado: “Na manhã da eleição, os americanos dirigiram-se às urnas naquilo que, na altura, parecia ser uma eleição que só teria um destino possível. O blogue Upshot do New York Times dava a Hillary Clinton 91% de hipóteses de vencer. O Huffington Post coloca-a nos 98% e a Princeton Election Consortium estimava os resultados na quase inevitabilidade dos 99%.”
Hillary, como sabemos, ganhou o voto popular, mas não nos sítios certos. Mook não teve a arte nem a audácia para se libertar da abordagem contabilística. Não teve o “golpe de asa” de um James Carville, com Bill Clinton, em 1992, ou de um David Plouffe, com Barack Obama, em 2008. Não foi apenas o facto de estes terem vencido, foi a forma como o fizeram.
Trump, cuja campanha foi liderada por estrategos experientes como Corey Lewandowski ou Paul Manafort, apostou numa fórmula vencedora junto de um eleitorado que queria autenticidade e disrupção: "Let Trump be Trump" (“Deixar Trump ser Trump”).
Permitiu-lhe ser mais transversal na geografia do voto, triunfando no colégio eleitoral, e “vingando-se”, assim, da humilhação pública a que o então Presidente Barack Obama o sujeitara no famoso Jantar dos Correspondentes da Casa Branca de 30 Abril de 2011, para o qual tinha sido convidado. Roger Stone, juntamente com o pérfido e já falecido Roy Cohn, foi um dos obreiros da personagem política de Trump e revelou mais tarde que foi nessa noite que este fez da Casa Branca um objectivo de vida.
O eleitorado que tinha sido seduzido em 2016 – e que já incluía latinos, negros, mulheres, classe média urbana, no fundo, pessoas tradicionalmente conotadas com o campo democrata – voltou a depositar em 2024 o voto em Trump. A receita desta campanha teve semelhanças com a de 2016, mas foi mais profissional e condimentada com a liderança da veteraníssima Susie Wiles, entretanto promovida a chefe de gabinete da Casa Branca. Foi uma campanha mais robusta, com mais dinheiro investido e mais estratégia. Houve um esforço para conseguir um voto geograficamente mais transversal.
Uma abordagem catch all vitaminada à boleia da rejeição (e até repulsa) que o eleitorado flutuante e democrata teve ao discurso excessivamente identitário e “wokista” em que Kamala Harris se deixou aprisionar. A sua fragilidade política, condicionada pelo legado Biden e debilitada pela ausência de ideias e carisma, ajudou a empurrar essa mesma parte do eleitorado para os braços de Trump, tal como Hillary desastrosamente o fizera, embora por razões diferentes.
Kamala Harris afundou-se numa espiral de ilusão, guiada por sondagens enganadoras e confortada por comentariado friendly que, tanto lá como deste lado do Atlântico, se esqueceu que em política há inúmeros factores que escapam aos pollsters e aos politólogos obcecados por gráficos. É verdade que Kamala lutou até ao fim, consciente do combate renhido, mas fê-lo acantonada na base de um eleitorado conquistado e tal, como Hillary, não houve um esforço de campanha para procurar seduzir a outra América. Pelo contrário, em alguns casos, da parte de Harris, sentiu-se uma certa ostracização (e até desprezo) pelo eleitorado que votou em Trump, remetendo-o para o medievalismo, onde a barbárie impera e as estrelas não brilham.
O desfilar de vedetas da música mainstream da ala progressista e iluminada foi apenas um sintoma de uma campanha democrata desfasada de parte considerável da realidade americana e, à semelhança do que tinha acontecido em 2016, voltei a achar que faltava a sonoridade de uma outra América. A 11 de Agosto, e inspirado por um artigo do New York Times, precisamente sobre a importância da subcultura americana para esta eleição, escrevia na minha conta do X que “o factor Kid Rock e tudo o que está inerente parece escapar à maioria dos analistas deste lado do Atlântico, que se estão a deixar levar (imprudentemente, em minha opinião) nas sondagens e numa certa euforia da campanha de Kamala”.
O factor Kid Rock e tudo o que está inerente parece escapar à maioria dos analistas deste lado do Atlântico, que se estão a deixar levar (imprudentemente, em minha opinião) nas sondagens e numa certa euforia da campanha de Kamala. https://t.co/MaHM4bkvGG
— Alexandre Guerra (@alex_d_guerra) August 11, 2024
Kid Rock, músico popular nos estilos country/rock/rap, representa a América do melting pot, a América dos muscles cars, dos camionistas, dos trailer parks, dos Walmarts, da apple pie, dos redneck, representa também os que trabalham no duro e pagam impostos, os que procuram o sonho americano, os que ambicionam ter a casa nos subúrbios com relvado e a bandeira americana hasteado no alpendre. Representa ainda o urbano e o rural, a confluência social e diversidade cultural, trabalhando em diferentes géneros musicais e desde sempre com artistas negros, o que lhe valeu uma homenagem da delegação de Detroit da NCAAP (Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor, no acrónimo em inglês). Personifica a miscelânea de ideias… conservador na economia e mais liberal em matérias como aborto ou temáticas identitárias. Devoto a Deus, mas ao mesmo tempo pecador e controverso. Dedica-se a filantropia, mas é capaz dos maiores exageros e ofensas.
Kid Rock foi dos primeiros artistas a apoiar Trump em 2016 e em 2024, mas antes apoiara Bill Clinton e Barack Obama nas suas corridas presidenciais. Estes actos sociais (votar é um acto social) não são inconciliáveis, têm é de ser compreendidos por quem gere e analisa uma campanha.
Kid Rock é a versão hiperbólica de muitos cidadãos americanos, tornando impossível a compartição estanque deste eleitorado. Harris não fez um esforço para compreender essa realidade. Trump há muito que a tinha interiorizado.