Os distúrbios de Lisboa, os arquitetos e as operações do Programa SAAL
Falhando os arquitetos na criação de cidade sustentável socialmente, entram os desgraçados dos polícias para resolver os buracos que nós não fomos capazes de entender e solucionar.
Nos quatro elementos Ar, Terra, Água e Fogo, a fúria da natureza manifesta-se através de ciclones e furacões (ar) terramotos e vulcões (terra), enxurradas e inundações (água), mas no quarto elemento – o Fogo – o incêndio é mais resultado da negligência e estupidez humanas do que da fúria da natureza.
Sendo questão seminal, ligada à própria natureza da arquitetura, resistir à agressividade do clima (no Paraíso a arquitetura será inútil e desnecessária), então poderá dizer-se que a arquitetura é um distúrbio da natureza, forjado pelo ser humano para criar o lugar habitado.
Ensinavam os mestres dos meus mestres que, em arquitetura, o ato de demolir constitui lição maior do ato construtivo, permitindo observar o que se manteve em bom estado durante a vida útil da obra e tudo o que apresenta patologias, fazendo diagnóstico das suas causas, ao modo como já Vitrúvio referia ser obrigação dos arquitetos dissecar os animais e analisar as suas vísceras para entender se o lugar seria salubre para erigir acampamento militar, edificar estabelecimento humano ou fundar uma cidade, não sendo assim de espantar o fascínio dos arquitetos perante a desconstrução ou a destruição dos edifícios, numa ótica puramente material.
Este fascínio esbarra no caráter humanista do ofício de arquiteto, distinguindo o ruir de coisas da tragédia humana associada, a implosão programada de um edifício do ataque às torres gémeas em 11/9/2001, quando os media se humanizaram, agindo em detrimento da liberdade e do direito à informação, não transmitindo as imagens de seres humanos saltando para o vazio ao ficar encurralados pelo fogo, código abandonado nos fogos florestais e nos distúrbios de Lisboa, transmitindo imagens catárticas de incêndios, de natureza mais publicitária do que informativa.
As imagens de revolta em Lisboa, viradas para caixotes do lixo a arder mostram que a raiva foi contida, não alastrou aos edifício, situação que distingue o caso de Lisboa de muitos outros, onde não só o lixo, mas a própria cidade não foi poupada.
Não serão os arquitetos culpados pelos distúrbios de Lisboa, mas não poderão deixar de se considerar responsáveis pelo facto de não terem sabido manter o tipo de trabalho participativo com as populações dos bairros pobres, ao terem permitido que essas operações ficassem aprisionadas ideologicamente por forças políticas que não têm o exclusivo da generosidade, do incentivo à participação do outro, do entendimento dos seus problemas reais, situação que veio a conduzir, na prática, à extinção do modelo do Programa SAAL (Serviço de Apoio Ambulatório Local, um programa estatal de construção habitacional criado após o 25 de abril para colmatar as necessidades habitacionais de populações desfavorecidas em Portugal), aquando da transferência das operações do âmbito da Administração Central, do Fundo de Fomento da Habitação (FFH) para a responsabilidade das câmaras municipais, cuja miopia política e a desconfiança dos métodos de trabalho participativos conduziu, salvo raríssimas exceções, ao esvaziamento do Programa SAAL e à apropriação do trabalho realizado por quem nada tinha feito até então.
Errou a jovem democracia, ao puxar para os partidos a responsabilidade única da ação comunitária, deixando ao cidadão a simples chamada ao voto, de quatro em quatro anos, para escolha dos decisores no novo ciclo político. Agora, assiste-se ao assalto ideológico às democracias por forças às quais chamamos de populistas, sem entender, ou sem querermos entender, que se apoiam no exército de cidadãos afastados da participação, ou que se não revêm no sistema e no tipo de participação que lhes é oferecido, sendo mais necessário e urgente olhar para eles, para as suas necessidades e aspirações, do que para aquele que os manipula.
O sentido de responsabilidade dos arquitetos perante os distúrbios fez invocar as populações que acompanharam as operações do SAAL e que foram abandonadas à sua sorte, com programas parcialmente realizados ou que ficaram só no papel, recolhendo nós ao conforto do trabalho de encomenda privada, mais preocupados com regalias sociais da classe profissional do que com a função social do arquiteto.
Os estudantes que se preocuparam e estudaram a situação precária do bairro da Cova da Moura, elegendo-a como tema da sua tese de final de curso, viram o bairro em peso a assistir às suas provas académicas, classificados com nota inferior a 14 e assim impedidos de seguir uma via académica, caso essa fosse a sua escolha, estando as notas altas reservadas para aqueles que seguiam as modas revisteiras.
Falhando os arquitetos na criação de cidade sustentável socialmente, entram os desgraçados dos polícias para resolver os buracos que nós não fomos capazes de entender e solucionar. Depois, o mais fácil é culpar sempre o outros, os bancos, os especuladores, o sistema político e por aí fora, até chegarmos à beira do precipício, e tudo voltar a acontecer de novo, como se tomados por uma espécie de cegueira.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico