Diário israelita diz que Israel está a levar a cabo “limpeza étnica” na Faixa de Gaza
Editoral do Haaretz fala da situação na zona Norte do território. “Antes comíamos erva, agora nem isso temos”, contou um residente.
O diário israelita liberal Haaretz escreveu, em editorial, que “o Exército israelita está a levar a cabo uma operação de limpeza étnica no Norte da Faixa de Gaza”, dizendo que “os poucos palestinianos no local estão a ser levados à força, foram destruídas casas e infra-estruturas e há estradas largas a ser construídas para completar a separação das comunidades no norte do centro da Cidade de Gaza”.
O editorial citava o especialista em questões militares do jornal Yaniv Kubovich, que descrevia o Norte da Faixa de Gaza como “parecendo que foi atingido por um desastre natural” (Kubovich esteve no local incluído numa visita levada a cabo pelo Exército de Israel).
A responsável da UNRWA Lousie Waterige fez, no final da semana passada, um vídeo do local: “Não há maneira de dizer onde a destruição começa ou acaba”, escreveu numa publicação na rede social X (antigo Twitter). “Não interessa de que direcção se entra na Cidade de Gaza, casas, hospitais, escolas, clínicas, mesquitas, apartamentos, restaurantes — está tudo totalmente arrasado”, relatou.
A água disponível para beber tem tanto sal que não serviria sequer “para animais ou plantas”, contou Saeed Kilani, residente no local, ao jornal norte-americano The Washington Post. E se no início da invasão israelita “sobrevivíamos a comer erva, agora já nem isso temos”, declarou. “Toda uma sociedade é agora um cemitério.”
Faixa etária com mais mortes: cinco a nove anos
Um cemitério em que as vítimas são, sobretudo, mulheres e crianças: segundo um relatório publicado na sexta-feira pelo Alto-Comissariado da ONU para os Direitos Humanos, estes representam quase 70% dos mortos na Faixa de Gaza. A análise foi feita com base em 8119 mortes identificadas durante os primeiros seis meses de guerra.
O grupo etário com mais mortes foi o de crianças entre os cinco e nove anos, seguido de entre dez e 14 anos, e de até quatro anos (o bebé mais pequeno a morrer tinha um dia de vida).
Ainda segundo o relatório, citado pelo Washington Post, cerca de 80% dos mortos estavam em casas ou outro tipo de habitação, “dando peso a alegações de que Israel tem atacado indiscriminadamente na sua campanha contra o Hamas”. E em 88% dos casos, diz a Reuters ainda com base no relatório, foram mortas cinco ou mais pessoas no mesmo ataque.
Saques e pilhagem
O Haaretz noticiou entretanto ainda mais um problema com a ajuda humanitária: o facto de em zonas controladas pelos militares israelitas, no Sul da Faixa de Gaza, estes assistirem sem intervir quando grupos criminosos locais saqueiam camiões de ajuda.
Há ainda tentativas de extorsão destes grupos armados às organizações de ajuda humanitária, para que paguem a estes grupos “dinheiro de protecção”. A maioria recusa.
Algumas organizações de ajuda disseram ao Haaretz que os condutores dos camiões procuraram ajuda dos militares israelitas, mas que estes se recusaram a intervir, mesmo quando estavam ao lado e viam os condutores a ser agredidos por palestinianos armados com Kalashnikovs, por exemplo.
Um jornalista do Haaretz que acompanhou um grupo de soldados na Faixa de Gaza descreveu que os saques não os surpreendiam. Ao ver uma coluna de ajuda, um soldado comentou: “Daqui a 500 metros, vão ser saqueados.”
Esta quarta-feira termina o prazo dado pelos EUA para que Israel permita a entrada de mais ajuda humanitária e facilite a sua distribuição (Outubro foi, segundo várias organizações, o mês em que menos ajuda entrou no território de toda a guerra), avisando que se não o fizesse, haveria “implicações para a política dos EUA”, nomeadamente a que decorre da legislação que proíbe a ajuda militar norte-americana a países que não permitam que seja prestada ajuda humanitária a populações civis num cenário de conflito.
Mas, com os EUA numa fase de transição, não é claro o que decidirá fazer a administração Biden, embora já houvesse especulação de que poderia optar por não vetar uma resolução contra Israel no Conselho de Segurança da ONU (a última vez que os EUA não usaram o seu veto numa resolução crítica de Israel foi em 2016, ainda com Barack Obama na presidência, mas já depois das eleições que deram a vitória a Donald Trump).
Mais, há muita especulação sobre a possibilidade de Benjamin Netanyahu poder ter planos para aceitar um acordo quando Trump tomar posse, para lhe permitir uma vitória diplomática — há analistas a lembrar o que aconteceu com a passagem de poder de Jimmy Carter para Ronald Reagan em 1981, com o regime iraniano a libertar os reféns americanos no dia da posse do novo presidente, e a imaginar que fosse possível algo semelhante agora.
Notícia editada às 16h05 para deixar mais claro que os saques de camiões com ajuda humanitária estão a acontecer no Sul da Faixa de Gaza.