Um desastre pior que o Prestige ameaçou Portugal. Acção da Marinha evitou maré negra

Um navio com 150 mil toneladas de gasóleo a bordo avariou-se ao largo de Portugal e levantou o risco de crise ecológica numa das rotas comerciais mais importantes do mundo. Mas o acidente foi evitado.

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O Nissos Rhenia, reparado em alto-mar, já seguiu viagem em direcção a França e está agora no Canal da Mancha Marinha Portuguesa
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É a rota marítima mais movimentada da Europa e uma das mais dinâmicas do mundo. Ao largo da costa portuguesa passam todos os dias cerca de 400 navios que fazem a crucial ligação entre o Médio Oriente, com a maior reserva de petróleo do planeta, e o Norte da Europa, um dos seus maiores consumidores. Uma embarcação encalhada no centro desta rota é o grão de areia capaz de travar as engrenagens de uma das importantes relações comerciais e económicas do mundo. E foi precisamente nessa rota, ao largo da costa portuguesa, entre a Póvoa de Varzim e Viana do Castelo, que um petroleiro com 150 mil toneladas de combustível a bordo se avariou, colocando em causa o tráfego marítimo e levantando no Governo o receio de um desastre ecológico iminente.

O primeiro alerta soou no Centro de Coordenação de Busca e Salvamento Marítimo de Lisboa na quarta-feira da semana passada, dia 30 de Outubro: Nissos Rhenia, um enorme navio com mais de 330 metros de comprimento e 60 metros de largura, tão grande como um porta-aviões norte-americano da classe Nimitz, o maior navio de guerra da actualidade, estava à deriva no oceano Atlântico depois de ter ficado sem propulsão no percurso até Le Havre, em França. Naquele momento já estava a apenas 13 milhas náuticas (cerca de 24 quilómetros) da costa: desde que se tinha avariado, nesse mesmo dia, até à sua detecção pelas autoridades portuguesas, tinha navegado em águas abertas em direcção à praia portuguesa com 28 tripulantes a bordo e milhares de toneladas de gasóleo nos tanques.

A monitorização da costa portuguesa costuma ser feita em três níveis, explicou ao PÚBLICO o engenheiro ambiental João Joanaz de Melo, investigador e especialista em sistemas ambientais que, no início do milénio, esteve envolvido nos estudos para a adopção do sistema de vigilância costeira em Portugal: através dos transponders instalados no navio, uns dispositivos electrónicos que comunicam automaticamente a localização da embarcação; de radares de longo alcance, que varrem a costa a uma distância de até 50 milhas (92 quilómetros); e através do Vessel Traffic Service (em português, ​Serviço de Tráfego de Navios), que monitoriza as viagens das embarcações.

Antes da instalação desta rede, a costa portuguesa servia muitas vezes de ponto de descarga das limpezas ilegais dos porões dos navios — os chamados derrames operacionais. Agora, não só esses derrames podem ser detectados e evitados, como os sistemas também servem para simplificar a comunicação entre as tripulações das embarcações e as autoridades marítimas do país.

O mais comum, indica o especialista, é que seja a tripulação da embarcação a avisar as autoridades de que está em apuros, precisamente através daqueles canais de comunicação. Mas o ministro da Defesa avançou que "foi a detecção e a acção da Marinha e da Autoridade Marítima que, obrigando à contratação de um rebocador e levando este superpetroleiro até para lá das 24 milhas (44 quilómetros), garantiu que um desastre ecológico não acontecia em Portugal".

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As autoridades portuguesas aproximaram-se do navio para coordenar as operações de reparação Marinha Portuguesa

Um novo caso Prestige à beira de acontecer

Em causa, confirmou o PÚBLICO junto do Ministério da Defesa, estava uma avaria dos motores que impedia a movimentação do navio. Mas estava também um "risco de um desastre que seria muito maior do que o de alguns anos atrás, por ocasião do Prestige", um navio-petroleiro com casco simples cujo tanque rebentou em 2002 quando a embarcação se partiu ao meio durante uma tempestade na costa da Galiza.

As palavras são de Nuno Melo, ministro da Defesa, que, em declarações durante uma visita ao Centro de Operações Marítimas (Comar) na Base Naval de Lisboa, em Almada, distrito de Setúbal, comparou o caso português ao acidente que, há mais de duas décadas, originou uma maré negra de 5000 toneladas de óleo combustível (um derivado do petróleo também conhecido como fuel-oil) que foi considerado o maior desastre ambiental registado na costa da Galiza, tendo afectado também o mar em Portugal e em França. À época, o Prestige tinha 77 mil toneladas de óleo combustível a bordo. O Nissos Rhenia tinha o dobro disso em gasóleo.

O risco ambiental no caso do petroleiro avariado ao largo da costa portuguesa era real: qualquer navio com aquela dimensão a navegar sem controlo em alto-mar simboliza, desde logo, "um perigo para a navegação", confirmou João Joanaz de Melo. Se encalhar, caso se aproxime demasiado da costa ou colida com um banco de areia, por exemplo, o perigo aumenta: o embate pode ser suficiente para abrir buracos no casco ou nos tanques contêm o combustível, lançando para o mar quantidades muito grandes de produtos nocivos para o ambiente.

As consequências de um acidente dessa natureza dependem do combustível a bordo do petroleiro. O óleo combustível a bordo do Prestige tem um impacto imediato maior do que o gasóleo transportado no Nissos Rhenia: o primeiro é mais denso e mais viscoso do que o segundo, sobrevive mais tempo na água por ter hidrocarbonetos mais pesados (degradando-se, por isso, mais lentamente) e adere muito facilmente às penas e peles dos animais marinhos. O gasóleo, no entanto, espalha-se com maior velocidade precisamente por ser menos viscoso e é mais difícil de remover por ter uma densidade mais próxima à da água, misturando-se com ela com maior facilidade. De qualquer das formas, uma coisa é sempre verdade, explicou João Joanaz de Melo: "Em alto-mar é dificílimo conter derrames."

A prioridade das autoridades e do Governo foi, por isso mesmo, resolver o problema em alto-mar: quanto mais o petroleiro se aproximasse da costa, maior a probabilidade de um acidente resultar num derrame; e, nesse caso, a eliminação do combustível podia ser ainda mais difícil porque o gasóleo contaminaria as areias. O primeiro passo foi enviar o NRP António Enes, que se encontrava em prontidão, para junto do Nissos Rhenia, de modo a estabelecer contacto com o navio e monitorizar a navegação na área.

A 30 de Outubro, às 18h, deu-se o segundo passo: obrigar um armador a contratar um reboque e afastar o petroleiro para uma distância de cerca de 24 milhas náuticas da costa, numa operação coordenada pela Autoridade Marítima Nacional através do capitão do Porto de Leixões. Enquanto isso, os meios da Direcção de Combate à Poluição do Mar ficariam de olhos postos no caso, para lançar o alarme assim que surgisse algum sinal de um derrame.

A hipótese de rebocar o Nissos Rhenia para terra firme seria sempre o último plano a colocar em cima da mesa para o Ministério da Defesa: o transporte de um petroleiro daquelas dimensões para a costa aumentava a probabilidade de incidentes pelo caminho — e o custo do reboque e da reparação sairia sempre do bolso do armador, que podia mesmo ser multado se resistisse ao plano A: reparar os motores em pleno oceano Atlântico.

"Rebocar em alto-mar é muito complicado porque é um peso morto brutal", concordou João Joanaz de Melo: é "um filme de terror" — mas um filme de terror que foi evitado porque, às primeiras horas de quinta-feira, 7 de Novembro, o armador conseguiu reparar os motores do navio e seguiu viagem, à 1h17, rumo a França. Estará agora no canal da Mancha.

Em comunicado, a Marinha portuguesa considerou: “O sucesso desta operação reforça o compromisso [da referida instituição e da Autoridade Marítima Nacional] em assegurar uma resposta permanente a incidentes no mar, garantindo não só a segurança de todos os envolvidos e a protecção da nossa costa, mas também a mitigação de um desastre ecológico.”

Já esta quinta-feira, Nuno Melo considerou que o caso deste navio, com bandeira das ilhas Marshall, comprova que o dinheiro colocado na área da Defesa "não é despesa, é investimento, que vem a crédito de todos os portugueses".