O contágio chegou ao PS?

Ricardo Leão tem um currículo rico de intervenções que muitas vezes se distinguem mal das do Chega. Pode o PS de Lisboa ser representado por quem tem estas ideias? Pode o secretário-geral nada dizer?

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1. Na nossa ordem constitucional o Estado não tem o direito de matar. Simples. Portanto, sempre que um agente público a quem foi confiada uma arma a usa e, sobretudo, quando desse uso resulta uma morte, o Estado tem a obrigação de dar uma justificação clara, credível e documentada para o que aconteceu. Em princípio, um polícia não deve usar a sua arma de fogo para intimidar ou ameaçar quem quer que seja, apenas em situação de legítima defesa quando a sua vida corre perigo. Ordenar a realização de um inquérito e a divulgação pública dos seus resultados é o mínimo que o Estado pode fazer quando alguém morre às mãos da polícia. Não é um ataque à polícia. É a defesa da nossa ordem constitucional que só pode ser criticada por quem a quer subverter.

2. Pergunta: porque é que houve quem, em vez de esperar pelos resultados desse inquérito, se revoltasse contra a morte de Odair Moniz e viesse para as ruas exprimir violentamente essa revolta? A resposta não pode ser "porque são uns delinquentes natos". A revolta a que assistimos é reveladora de um mal-estar profundo entre as populações que vivem nos bairros mais segregados da área metropolitana de Lisboa. Mal-estar porque sentem que existem práticas racistas disseminadas entre os agentes públicos, e em especial entre as forças policiais, pelo que nunca serão tratadas por estas de forma justa. Mal-estar porque não se sentem representados no espaço público e político, sendo pouca a voz que têm para exprimir as suas insatisfações e propostas.

3. A polícia deve conter os motins que resultam daquele mal-estar, mas não devemos confundir delinquência e revolta, mesmo quando estas se intercetam. E devemos ter sempre presente que não há qualquer equivalência entre a morte e a vandalização do espaço público. A contenção da violência da revolta, no curto prazo, não deve, acima de tudo, fazer-se à custa das intervenções necessárias para resolver as causas do mal-estar que está na base da revolta. Recordem-se: o racismo e a falta de voz. Enfrentar o primeiro requer tolerância zero para com comportamentos racistas, sobretudo quando estes são protagonizados por agentes públicos. Resolver o segundo passa pelo recrutamento regular de membros das minorias para lugares de representação nos espaços mediático e político. No domínio da política, PS e PSD perderam, nas últimas eleições, mais uma oportunidade para o fazer. No caso do PS, não foi por falta de propostas nesse sentido.

4. Infelizmente, não é só por omissão que os principais partidos se esquivam a enfrentar os problemas. Assistimos, recentemente, a vários comportamentos que em lugar de enfrentar os problemas os cavalgam numa lógica estranha e indecente de concurso com a extrema-direita do Chega. Começou com a questão colocada pelo presidente da Câmara de Lisboa, do PSD, do alargamento das funções da polícia municipal. Não querendo ficar fora da fotografia dos homens fortes que só fazem músculo contra os fracos, o presidente da Câmara de Loures, do PS, apressou-se a apoiar aquele alargamento. Não fiquei estupefacto. Ricardo Leão tem um currículo rico de intervenções que muitas vezes se distinguem mal das do Chega, como aliás se encarregaria de tornar claro nos últimos dias. No dia 30 de outubro, fez aprovar em reunião de Câmara uma proposta do Chega, de braço dado com o PSD, para retirar casas municipais a quem cometer delitos e crimes como os que aconteceram no seguimento da morte de Odair Moniz. Na altura proclamou: “(…) É para acabar e para despejar. Ponto final parágrafo (…). Quem é maior de idade, é titular de um arrendamento na habitação municipal de Loures e seja comprovado que participou nestes atos é para retirar a casa, ponto final parágrafo, sem dó nem piedade”. Não chegava a substância da proclamação, acrescentou-se ainda a rudeza das palavras para uma aproximação mais clara à fórmula populista. Tática para combater a extrema-direita? Mais parece convergência entusiasta com esta.

5. Têm alguns chamado a atenção para a ilegalidade das propostas aprovadas pela Câmara de Loures e clamado pela sua verificação em tribunal. Seja. Mas antes disso importa-me o julgamento político. Ricardo Leão não é apenas presidente da Câmara de Loures. É, também, o líder recém-eleito da Federação da Área Urbana de Lisboa do Partido Socialista, nas candidaturas de apoiantes do atual secretário-geral, Pedro Nuno Santos. Pode o PS de Lisboa aceitar continuar a ser publicamente representado por quem tem estas ideias, propostas e intervenções extremistas? E pode o secretário-geral do PS nada dizer sobre comportamentos que violam claramente a Carta de Princípios do Partido Socialista? Aguardam-se respostas a estas perguntas simples.

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