A campanha eleitoral norte-americana e a nova ordem comunicacional
As candidaturas investiram em novas estratégias para chegarem a bolsas muitíssimo específicas de eleitores, naquela que já é conhecida como a “eleição do podcast”.
Não é possível compreender a campanha presidencial norte-americana sem ter em conta a nova ordem comunicacional dos EUA: na era dos consumos híperindividualizados, o modo como cada um obtém notícias, os temas que considera relevantes e as personalidades em quem confia podem variar muito de pessoa para pessoa, mesmo entre eleitores do mesmo partido, já que democratas e republicanos estão longe de constituir grupos coesos.
Esta dispersão é indissociável da diminuição do consumo de notícias convencionais que durante mais de um século contribuiu para a construção de consensos alargados na sociedade sobre questões essenciais da vida coletiva. Isto não significa que os media tradicionais não continuem a desempenhar um papel relevante em certos momentos-chave: recordemos que foi um debate televisivo que levou Joe Biden a abandonar a corrida presidencial. Todavia, as várias narrativas sobre esse momento foram primordialmente construídas e reinterpretadas nas redes sociais. Tal dispersão está igualmente relacionada com o aumento da desconfiança nos media: de acordo com o Digital News Report deste ano, apenas 32% dos americanos confiam nas notícias.
Por esta razão, as campanhas investiram em novas estratégias para chegarem a bolsas muitíssimo específicas de eleitores, sendo esta já conhecida como a “eleição do podcast”. Estima-se que 135 milhões de pessoas ouçam um podcast por mês, enquanto 98 milhões de americanos o fazem semanalmente. Vários estudos também sugerem que a confiança nos podcasters é maior do que noutras personalidades dos media, indicando que os influencers estão a ganhar cada vez mais relevo na política norte-americana. De sublinhar que o mais importante não é o formato: quando uma organização de notícias convencional cria um podcast, este tende a ser percebido como menos autêntico do que os liderados por criadores digitais que deixam o convidado falar sem cortes ou contraditório, abordam os temas políticos de modo diferente dos jornalistas e promovem conversas descontraídas e informais.
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Donald Trump alcançou muito mais potenciais eleitores homens com a sua conversa de três horas com Joe Rogan (33 milhões de visualizações no YouTube nos dois primeiros dias) do que teria conseguido com várias aparições na Fox News, CNN e MSNBC juntas, para além do facto de os três canais de notícias terem um público médio com idades entre os 65 e os 70 anos. Por sua vez, Kamala Harris chegou a mulheres mais jovens no podcast “Call Her Daddy” do que nos programas “60 Minutes” (da CBS) e “The View” (da ABC) juntos, já que estes também alcançam principalmente espetadores acima dos 65 anos. Todavia, a maioria dos podcasts apenas é relevante em certos nichos, e as campanhas sabem-no bem. Por isso, e para tentarem alcançar diferentes segmentos do eleitorado que cruzam género, idade, etnia, religião, escolaridade, rendimento e localização, os candidatos embarcaram numa verdadeira maratona de podcasts, em particular nos swing states.
Se cada eleição presidencial é uma fotografia instantânea do panorama comunicacional do momento, a de 2024 indica que a atenção e o envolvimento das audiências estão a dispersar-se cada vez mais e que muitos americanos cortaram com as modalidades convencionais de conhecimento, abrindo assim um enorme espaço para a desinformação (acresce que, a par dos influencers e dos podcasts, os memes e os mercados de previsões aparecem como novos elementos “informativos”).
Antevê-se um processo de apuramento de resultados demorado, contencioso e altamente desgastante. É até possível que esses resultados não encerrem a disputa, antes a acicatem, levando a que, no contexto da nova ordem comunicacional, a fenda na epistemologia cívica se agudize. Quando, por fim, institucionalmente, se definir quem ganhou, o/a vencedor(a) não vai beneficiar de qualquer “estado de graça”. Bem pelo contrário, herdará uma esfera pública ainda mais estilhaçada em múltiplos fragmentos disformes de desentendimento coletivo, arriscando-se a ser o/a presidente dos Estados Desunidos da América.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico