Bairros mais sociais
Trabalhar com públicos diversos na área da cultura implica, necessariamente, disponibilidade para adaptar estratégias, processos, metodologias, formas de pensar e de atuar, exige muita flexibilidade.
Há muito que resisto à tentação de ligar a televisão e ficar a assistir às emissões dos canais de informação. Mais resistência ainda ofereço às redes sociais. Mas, no outro dia, varria o ecrã do meu telemóvel e deparei-me com um vídeo em que um jornalista entrevistava um dos supostos "líderes dos confrontos no bairro do Zambujal". Já podia imaginar jornais e telejornais, programas televisivos de manhã à noite a falar sobre criminalidade, periferia, zonas problemáticas e bairros sociais. Então, dei por mim a pensar se é possível conceber a ideia de um bairro que não seja "social"?
Esses territórios que se vão rotulando também como "dormitórios" ou, nos casos mais dramáticos, "problemáticos", são, não poucas vezes, retratados como "desertos", lugares inóspitos que parecem habitados por mortos-vivos deslizando, para trás e para diante, numa frágil rede de transportes públicos ou que se arrastam por esses terrenos agrestes que não são mais do que o resultado de políticas desarticuladas, de um assustador desordenamento territorial e da acumulação de erros grosseiros ao nível da habitação, e de uma generalizada incapacidade em erradicar a pobreza e combater a exclusão social. E é, precisamente, nessa perpetuação de uma certa identidade de "habitante de bairro social”, rótulo que, como qualquer outro, nos aprisiona a todos, que reside a maior das violências – perversa, invisível e sistémica – que, ocasionalmente, leva aqueles que se sentem mais agrilhoados a explodir com raiva, por desespero, com medo, de uma forma descontrolada e sem sentido. Porém, em entrevista a Natália Faria, no PÚBLICO, o sociólogo João Teixeira Lopes afirmava, de uma forma tão clara, que "para muitas destas populações, esta é a única forma de existirem no espaço público."
Não nasci e não vivi em nenhum bairro que tivesse esse selo tão desagradável. Mas cresci numa dessas enormes manchas habitacionais que circundam a capital portuguesa e que foram começando a ser construídos com o intuito de acolher muita gente que vinha de outras zonas do país, como aconteceu com os meus pais e os pais deles, ou aqueles que vinham de outros países – uma grande percentagem de pessoas que provinha das antigas colónias portuguesas. Evidentemente, não fui poupado a rótulos, quase sempre depreciativos: era suburbano, vinha dos arrabaldes, morava num dormitório, trabalhava em territórios problemáticos. Sim, continua/continuo a ser tudo isso. E esses discursos, tantas vezes negativos e segregadores, estenderam-se ao meio artístico. Aqueles que radicam as suas ações nestes territórios passam por grandes dificuldades para verem os seus projetos, devidamente, reconhecidos, sem que, obrigatoriamente, tenham que ser validados por uma qualquer cátedra centra(liza)da em Lisboa.
Em tempos, reuni-me com um (re)conhecido diretor de uma influente instituição cultural – porventura, "poderosa" também podia ser o termo – e, quando partilhava com ele a programação que o teatromosca tinha estabelecido para o AMAS – Auditório Municipal António Silva, saltou-lhe à vista o nome de uma coreógrafa francesa. "O quê? A Phia Ménard vai ao Cacém", dizia-me ele, muito admirado, como se eu lhe tivesse revelado que os mortos (do dormitório suburbano) afinal caminham e até, pasme-se, são capazes de encher, regularmente, um equipamento cultural de 188 lugares que não se situa no Rossio, na Praça da Batalha ou numa qualquer perfumada avenida parisiense. Sim, essas "zonas críticas" ou esses "bairros problemáticos" também podem afirmar-se como polos culturais irradiadores de cultura, campos privilegiados para a criação artística, com tanto sucesso como qualquer outra capital europeia. Para isso, como defende João Teixeira Lopes, são fundamentais "políticas públicas territorializadas e participativas", que envolvam mesmo as pessoas na tomada de decisões. Contudo, em tantos momentos e tantas ocasiões, esse caráter "participativo" de algumas iniciativas, também na área da cultura, não passa de instrumentalização ou, em casos mais inocentes, mas não menos polémicos, mero oportunismo.
Trabalhar com públicos diversos implica, necessariamente, disponibilidade para adaptar estratégias, processos, metodologias, formas de pensar e de atuar, exige muita flexibilidade. O exercício de estabelecer um diálogo honesto e desempoeirado com diferentes comunidades, tendo em vista a sua real participação e influência no desenhar de políticas e/ou linhas programáticas para territórios e equipamentos culturais, requer total abertura para integrar modos de ver e de pensar que poderão mesmo entrar em conflito com muitos dos fundamentos que têm sido a base do trabalho desenvolvido, resultando, porventura, em orientações, em objetos artísticos ou procedimentos muito pouco polidos e que alguns poderão catalogar, no mínimo, como "amadores". É esse o risco, pois claro. Mas se não se aceitarem essas perspetivas, de todos aqueles que, eventualmente, poderão ter poucos ou nenhuns hábitos de consumos culturais – e os estudos mais recentes não apresentam resultados muito animadores neste capítulo –, se essas vozes forem, insistentemente, silenciadas, não estaremos, realmente, a trabalhar para uma plena democratização do acesso à cultura e às práticas artísticas, não estaremos a caminhar para uma necessária literacia cultural e, mais fundamentalmente, não estaremos a promover uma sempre tão desejada e eternamente anunciada coesão territorial.
No final de um dos espetáculos que apresentámos no AMAS, uma espetadora dizia-nos que tinha muita sorte em morar em Agualva-Cacém e por ter um espaço cultural como este à porta de casa, e que já não precisava de ir sempre a Lisboa para assistir a espetáculos. Pois, é importante uma boa rede de transportes, é fundamental disponibilizar cuidados de saúde, é vital promover o acesso gratuito de todos os cidadãos à educação, é crucial criar um conjunto de medidas, verdadeiramente, eficazes na resolução dos assustadores problemas da habitação, em Lisboa, na Amadora, no Fundão. Mas também deve ser essencial criar condições para que as populações tenham a oportunidade de alargar horizontes e descobrir outras formas de ver e sentir o mundo a partir do contacto com outras visões (artísticas) e outros modos de representar inquietações ou ambições, para que se sintam ligadas a algo. "Já estou cansada de ouvir tanto falar de inclusão", dizia-me uma dramaturga francesa, nascida no Djibuti, "eu não quero ser incluída pela sociedade francesa. É tudo muito mais simples. Eu só não quero é ser excluída".
Sabemos bem que a exclusão, a pobreza, a imobilidade social, as desigualdades, são excelentes compostos para uma explosão de violência. Ah, mas há sempre quem se deleite com um espetáculo destes! Alinhando-me com Carlos Vargas, que escreveu no PÚBLICO que se deveria atribuir "o estatuto de Teatro Nacional aos teatros de Bragança, Viseu e Almada, acompanhando esse estatuto do correspondente reconhecimento financeiro, protegendo e valorizando o serviço público descentralizado que aqueles teatros têm vindo a assegurar", eu propunha ainda que fossem criados teatros nacionais também no Bairro do Zambujal, no Bairro da Portela e em Casal de Cambra.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico