Os acórdãos de Guimarães

Os acórdãos, que concluiram haver trabalho subordinado, observaram o princípio de realidade, contornando a cuidada estrutura de aparências do negócio dos estafetas geridos por plataformas.

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Aconteceu em Guimarães uma circunstância curiosa: no mesmo dia de Outubro, foram emitidos dois acórdãos, relatados por duas juízas desembargadoras, sobre a questão da natureza jurídica das situações dos chamados “estafetas” ou “entregadores” perante as empresas que gerem as plataformas electrónicas a que estão ligados. Os dois acórdãos atingem o mesmo resultado por dois caminhos diferentes: esses prestadores de trabalho são trabalhadores subordinados ao serviço das referidas empresas.

Trata-se daquelas pessoas que a cada momento vemos passar, de bicicleta ou de mota, com grandes caixas cúbicas às costas, onde transportam refeições ou outros produtos, quer chova quer faça sol, serpenteando entre os carros com uma tranquilidade quase suicida – esses mesmos que, na versão das empresas gestoras das plataformas, são profissionais autónomos, quiçá empresários em nome individual, que assinaram com plena consciência um contrato de prestação de serviços com muitas páginas e longos parágrafos, que lhes oferece, aparentemente, o domínio total da sua actividade.

As acções judiciais em causa são instauradas pelo Ministério Público, mediante participação da ACT (inspecção do trabalho), e os acórdãos acima aludidos decidem sobre recursos do mesmo Ministério Público. Na verdade, as sentenças que os tribunais de primeira instância produzem são, quase sistematicamente, desfavoráveis ao reconhecimento da existência de trabalho dependente nos referidos casos.

Essas decisões iniciais enfermam de uma inconsistência derivada dum factor que, desde logo, as compromete: a consideração analítica de características próprias do contrato de trabalho, na sua configuração típica e tradicional.

Com efeito, é necessário ter presente que toda a concepção de tal negócio, por parte das empresas que criam e gerem essas plataformas, assenta justamente num propósito de afastamento das regras que protegem o trabalho dependente, de apagamento de qualquer vínculo com os estafetas, e de garantia da irresponsabilização das mesmas empresas. Esse propósito está presente em todo o desenho da actividade, que se pauta pela metódica exclusão de características normalmente associadas à dependência ou subordinação das pessoas que, em última análise, executam o trabalho necessário.

Vemos então que esses estafetas, “empresários em nome individual”, tributados como independentes, podem tomar livremente uma grande parte das decisões práticas quanto à realização de cada serviço de entregas.

No confronto com o paradigma do trabalho na fábrica ou no escritório, esse desenho – que se foi aperfeiçoando à medida das necessidades – é susceptível de gerar facilmente a convicção de que se está, na realidade, perante situações de autonomia praticamente absoluta. A existência de um “contrato” de muitas páginas e muitos parágrafos, em que a autonomia do trabalhador é constantemente afirmada, completa o quadro.

A inconsistência das decisões judiciais a que fizemos referência atrás deriva do facto de nelas se discutir o assunto num plano que lhes retira consistência, e que é exactamente o desejado pelas empresas das plataformas: o das características pontuais ou tópicas da subordinação no trabalho, cujo desbaste ou apagamento, real ou ilusório, é precisamente a chave do desenho da actividade.

Ora toda essa elaborada concepção contratual e operatória, por detrás da qual se encontra um poderoso algoritmo que “decide” praticamente tudo o que é importante, não permite ocultar a essencial realidade: a de que os estafetas ou entregadores actuam no quadro de uma organização e de um negócio criados e conduzidos por outrem, actuando segundo regras básicas embutidas num algoritmo a que são totalmente alheios, incluindo as que presidem ao cálculo das remunerações, e sob uma invisível supervisão garantida pelo mesmo algoritmo.

Sempre no plano das realidades, é evidente que a grande maioria das pessoas em questão (muitas de longínquas nacionalidades) não tem condições para compreender integralmente o contrato que lhe é posto na frente, e actua em condições de carência económica que são, em si mesmas, factores de agravamento da dependência – ou, mais concretamente, de não utilização de quaisquer margens de “autonomia” que lhes sejam oferecidas.

Os acórdãos de Guimarães, cada um à sua maneira, têm o mérito de observarem escrupulosamente o princípio de realidade – que é básico na qualificação das situações concretas –, contornando a cuidada estrutura de aparências em que assenta o negócio dos estafetas geridos por plataformas.

Questão diferente é a das regras legais aplicáveis a essa modalidade de trabalho. A desconstrução do contrato de trabalho que a caracteriza torna o Código do Trabalho completamente desajustado. É, em suma, necessário definir para tais situações um regime específico de condições de trabalho e de direitos laborais, inspirado nas orientações fundamentais do Direito do Trabalho. Essa definição é, mesmo, mais importante e necessária do que a exacta e preciosa qualificação jurídica das situações em causa, face à tradicional dicotomia “subordinação/autonomia”.

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