As vigilâncias do senhor reitor
“Eu, quatro vezes por ano, fecho-me com a totalidade dos meus núcleos de curso [...] e, à porta fechada com um confidential agreement em que o que lá se passa não é utilizado como fonte, eu sei tudo sobre os professores. Já agora, antes de ser reitor, eu fiz uma amostra de 100 por cento dos meus docentes do quadro da universidade. Sei exatamente o que cada um deles faz, como está - quando faltam às aulas, quando fazem batota com as aulas, quando não põem lá os pés, sei isto tudo de cada um, com este cuidado. Conheço as debilidades da minha própria instituição, no sentido de a fortalecer.” Emídio Gomes, reitor da UTAD - Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, 9 de outubro de 2024
Na conferência inaugural do Inov-Norte, Centro de Excelência de Inovação Pedagógica na Região Norte, que teve lugar no dia 9 de outubro, Emídio Gomes divulgou a sua visão do que é ser reitor de uma universidade. E essa visão é ser um polícia dos professores, é intimidar os estudantes para denunciarem os professores, num contexto em que não há possibilidade de contraditório e em que os visados não têm conhecimento do que lá é dito sobre eles mesmos. É instituir a delação como norma, legitimar a denúncia anónima, é torpedear o funcionamento democrático e transparente das instituições de ensino superior, é, enfim, entender a missão do reitor como Big Brother, como Grande Inquisidor. É ainda socavar a ação do conselho pedagógico, órgão que por determinação estatutária deve analisar as questões pertinentes ao normal funcionamento da atividade letiva.
Quando alertámos para os potenciais problemas decorrentes da concentração do poder exacerbada pelo Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior, era também disto que falávamos. Mas fizeram-se orelhas moucas e eles aí estão, desembaraçados e sem pudor, os mandarins. Quando, mais tarde, participámos nas reuniões da Comissão de Avaliação Bipartida da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior criada no âmbito do Programa de Regularização Extraordinária dos Vínculos Precários na Administração Pública também tivemos contacto direto com atitudes e disposições similares que nos trouxeram à memória a velha máxima de Lord Acton: “O poder tende a corromper, o poder absoluto corrompe absolutamente”. Mas sempre à porta fechada.
O reitor da UTAD, ao instigar a delação nos alunos, revela bem que valores defende e indicia um estatuto de impunidade que tudo permite. Estas afirmações deviam gerar uma reprovação unânime e veemente, não só pelos docentes da UTAD, mas por todos os docentes do ensino superior. Por sua vez, a UTAD devia facilitar ao seu reitor o regresso ao baú onde tem trabalho “para 40 ou 50 papers” e dispensá-lo da maçada de gerir a universidade.
O que diferencia as universidades em Portugal das suas congéneres do mundo não são só os recursos materiais e financeiros, é também esta visão retrógrada e paroquial, que é incapaz de criar uma estratégia própria para um país como Portugal, com as suas condicionantes, mas não condenado a um lugar periférico e acessório no mundo.
Mas o essencial que estas afirmações revelam é uma conceção de universidade nos antípodas do que deve ser uma instituição de ensino superior. A universidade deve ser um espaço de conversa, de confronto de ideias, de procura das verdades, de discussão do que é a sua missão em prol do bem comum e da humanidade. Sobretudo para os mais jovens, deve ser um lugar onde são confrontados com diferentes visões da vida, para que possam refletir criticamente sobre as suas escolhas morais, cívicas e políticas.
A universidade deve, por isso, contribuir para que os jovens sejam cidadãos cultos e esclarecidos, empenhados e capazes de deliberar sobre o bem comum. Neste sentido, em vez de espaço de vigilância e controlo, deve ser lugar de democracia, liberdade, transparência e participação plena.
Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico