Quem gosta de óleo de fígado de bacalhau? (A direita e os ricos)

A recusa terminante das direitas em aceitar o imposto sobre os muito ricos é contraproducente. Pode, em situações-limite, ser o rastilho para uma violência descontrolada de que ninguém sai a ganhar.

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A política é a arte de procurar problemas, encontrá-los em todos os lados, diagnosticá-los incorretamente e aplicar as piores soluções.
Groucho Marx

O G20 vai discutir, em novembro, um imposto especial de 2% aos “super-ricos”, as pessoas que têm uma riqueza superior a mil milhões de dólares. O G20 é o fórum internacional onde os países mais ricos se reúnem. É frequentemente é acusado, da esquerda para a extrema-esquerda, de ser insensível às desigualdades de riqueza e de estar a soldo dos interesses do “grande capital” e dos endinheirados. Quando o assunto foi agendado na Assembleia da República, por iniciativa do Livre, PS e PAN, todos os partidos situados à direita do PS se manifestaram categoricamente contra.

Antes de prosseguir, impõe-se uma declaração de interesses: sou liberal, não sou (nem de perto) abastado, não estou isento de IRS e faz-me espécie a sanha contra os ricos e as empresas “pornograficamente” lucrativas típica dos partidos à esquerda do PS. Diante da recusa perentória dos partidos à direita sobre o imposto aos endinheirados, acrescento às irritações pessoais o alinhamento metódico das direitas com os ricos. Em vez de serem advogados de defesa acríticos dos que nadam em privilégios materiais, talvez os partidos à direita ganhassem em abdicar de dogmatismos, deixando-os no regaço da extrema-esquerda. Um dogmatismo é um dogmatismo, mesmo que venha disfarçado de diferentes pressupostos e obedeça a bandeiras diferentes.

O meu liberalismo não se encaixa com certas intransigências da IL. Em vez de esconjurar, quase por reflexo condicionado, tudo que soe a (aumento de) impostos, sem refletir sobre o que está em causa e se justifica uma exceção aos seus princípios, a IL devia saber ler o tempo e a circunstância. Todos os partidos, de um lado ao outro, deviam estar menos presos aos dogmas e deviam perfilhar o pragmatismo. Afinal, aprende-se que a política foi inventada para resolver os problemas das pessoas. (A menos que se subscreva a visão cínica de Groucho Marx.)

Um shot de Filosofia vem a calhar para ajudar ao lampejo de pragmatismo que é uma necessidade para os partidos à direita. Ter a capacidade para nos colocarmos no lugar do outro é um cânone da Filosofia moral. Admito que para os apóstolos da política como a conhecemos, tão dependente da partidarite aguda e das táticas que levam os partidos a esquecer o fim para que foram inventados, invocar aquele preceito filosófico pode soar a ingenuidade.

Aceito: sou ingénuo. É desta ingenuidade que parto para considerar que se justifica, até para um liberal, apoiar a tributação excecional dos muito abastados. Uma pessoa que seja titular de uma grande fortuna devia aceitar o exercício de substituição de lugar com alguém que seja carenciado, para afirmar: se eu estivesse no lugar daquela pessoa, gostaria que um rico me ajudasse. Não estou a pensar numa troca bilateral, um deles fazendo filantropia em benefício do outro, que dela beneficia; estou a pensar nessa pessoa anuir que a redistribuição se opera através do Estado, que cobra impostos e depois os distribui de acordo com um mapa de preferências que dá corpo às políticas públicas. Estou a pressupor que essa pessoa reconheça que amortecer, por pouco que seja, as assimetrias que o separa da imensa maioria é um imperativo moral.

A recusa terminante das direitas em aceitar o imposto sobre os muito ricos é contraproducente. Alimenta a tensão social, podendo, em situações-limite, ser o rastilho para uma violência descontrolada de que ninguém sai a ganhar. Ateia a insensibilidade social que trespassa muitas direitas, oferecendo um trunfo às esquerdas: elas é que defendem os desvalidos, elas é que se libertam da insensibilidade social, elas é que, à conta destes pergaminhos, constroem uma imagem pública decente; montadas nesta linhagem, ufanas em delimitar as trincheiras que as separam “da direita”, cavalgam na superioridade moral e depressa descaem para a arrogância, todavia tolerada por ser um instrumento da sua superioridade moral.

O imposto sobre os super-ricos é a oportunidade para “a direita” deixar de ser obstinada e, com essa obstinação, oferecer um tesouro valioso às esquerdas. A mudança de atitude não poderia ser determinada por uma inflexão oportunista, como quem muda de opinião apenas para esvaziar os argumentos do adversário. A mudança teria de ser genuína; essas direitas teriam de reconhecer a justeza de impor aos muito abastados um tributo excecional por terem uma fortuna colossal. Sem a carga punitiva – uma certa culpa moral por ser rico – que se imputa à detenção de fortunas; apenas por ser justo que os mais ricos desviem uma pequena parcela da sua fortuna a favor da imensa maioria. Se não for uma mudança genuína, é preferível que as direitas se mantenham agarradas aos seus atávicos padrões. Pelo caminho, perdem uma oportunidade para se civilizarem. Para fingimentos e táticas que sopesam oportunismos, levamos com as lamentáveis encenações a propósito da negociação do Orçamento do Estado para 2025.

Antecipando algumas críticas, direi que não guinei à esquerda, contrariando os que, à direita, assim ajuizarem. Aos das esquerdas que quiserem tutelar a minha ideia, também direi que não me juntei a eles. Desminto os que, presos às suas convenções herméticas, me acusarem de estar a ver as coisas do avesso, porque a sensibilidade social é um monopólio das esquerdas. Se me for permitido enviar um par de recados, às direitas aconselho que não sejam defensoras sistemáticos dos ricos e que alarguem o horizonte em que medra o seu pensamento; às esquerdas recomendo que repensem os dogmatismos que costuram um viés de que não dão conta (ou fingem que não dão conta).

Gostamos de comer trufas de chocolate. Mas todos fazem um esgar de desprazer se tiverem de ingerir uma colher de óleo de fígado de bacalhau. Quando é preciso, temos de ingerir óleo de fígado de bacalhau. Para que mais gente possa deliciar-se com trufas de chocolate.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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