É assim que queremos valorizar a agricultura e o interior?

Convém cuidar daqueles que permanecem no interior, procurando que não desertem para outras paragens. É preciso, pois, cuidar da agricultura.

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Muito se fala no despovoamento do interior e na necessidade de encontramos soluções e condições que atraiam habitantes para os denominados “territórios de baixa densidade”. No entanto, a agricultura tem estado praticamente dissociada dessa discussão, apesar de constituir a base económica da maioria dos concelhos fora da faixa litoral. Antes de tudo, convém cuidar daqueles que permanecem no interior, procurando que não desertem para outras paragens. É preciso, pois, cuidar da agricultura.

O melhor exemplo das contradições que se vivem é o calvário de exigências pelo qual o agricultor passa para aceder aos apoios no âmbito da Política Agrícola Comum, o que faz com que muitos desistam e outros desesperem. Prova disso é a dificuldade em executar o Programa de Desenvolvimento Rural (PDR2020). Assistimos também à transformação dos técnicos de serviços agrícolas em autênticos burocratas, retirando-lhes tempo precioso para acompanharem o agricultor no terreno. Afinal, a agricultura acontece lá fora, nos campos, e não atrás do ecrã de um computador.

Vamos a exemplos concretos.

Tomemos uma pequena parcela de mato no concelho de Murça, digamos de 2500 m2, onde se pretenda instalar um olival com abertura de terraços e instalação de um sistema de rega gota a gota. Para um eventual apoio de 50% do investimento elegível, vamos precisar de um parecer da CCDRN no âmbito da Reserva Ecológica Nacional. Também necessitaremos de um parecer da Direção Geral do Património Cultural na componente do património arqueológico, sem esquecer o parecer ou licenciamento do município conforme instrumentos de gestão territorial aplicáveis à localização investimento. Todos estes pedidos têm de ser devidamente instruídos e, em muitos casos, têm de ser pagas as respetivas taxas. Se nos tocar a má sorte de termos uma azinheira ou um sobreiro no caminho (mesmo que raquíticos ou doentes), há que aguardar pela autorização do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) para o abate dos mesmos. Não olvidar que, para a abertura ou melhoramento do furo destinado à rega, será forçoso comunicar e obter a autorização da fatídica Agência Portuguesa do Ambiente.

Por último, para receber o dito apoio, é preciso submeter todos os documentos de despesa numa abominável plataforma do Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas (IFAP), juntamente com certidões de não dívida às Finanças e à Segurança Social, lançamentos contabilísticos, extratos bancários e a exibição do cartão do viveirista autorizado junto do qual se adquiriram as ditas oliveiras. Se não formos muito azarados, haverá que fazer fotografias georreferenciadas dos investimentos realizados através de uma app criada para o efeito (e, como se imagina, muito adequada ao perfil etário e socioeconómico dos nossos agricultores), evitando-se, assim, a deslocação ao local do técnico responsável pela análise da candidatura.

A agravar este cenário, não existem calendários fiáveis e tampouco um planeamento da abertura de candidaturas suscetível de dar alguma previsibilidade ao agricultor quanto aos apoios que pode obter para valorizar a sua exploração agrícola ou ao jovem que se queira instalar.

Era bom que os responsáveis pela política agrícola não só sujassem os sapatos como assistissem à via-sacra em que se transformou o processo de elaboração e submissão de uma candidatura até que os apoios cheguem a quem foram destinados: ao agricultor.

É preciso conhecer a realidade, não esquecendo as especificidades de cada território, para se promoverem as mudanças que se impõem e as reformas que o sector agrícola reclama, nomeadamente no que à simplificação de procedimentos diz respeito. Não bastam as palavras caras ditas em certames onde se multiplicam os brindes, onde se provam queijos e enchidos e se admiram as maravilhas da agricultura portuguesa.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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