Lisboa insalubre

Esperemos que a insalubridade dos bairros históricos capital não seja a demonstração do ostracismo de que se queixam os munícipes que ainda vivem ali, contra a vontade dos promotores imobiliários.

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A um ano das próximas eleições autárquicas é oportuno começar a refletir sobre os temas que afetam os munícipes mais vulneráveis da capital, a começar pelos que que, resistindo heroicamente à ganância dos grandes interesses imobiliários, persistem em continuar a viver nos bairros históricos.

À semelhança do que respeita à crescente insalubridade dos pavimentos das ruas e dos passeios, das fechadas, dos jardins e das praças, das estátuas e restante mobiliário urbano e dos transportes coletivos, os residentes nos bairros históricos de Lisboa estão justificadamente indignados com a inoperância das respetivas autarquias para lidar com a recolha do lixo doméstico e comercial.

O problema é antigo mas a capacidade para aprender com os erros passados e com as boas práticas nas outras capitais europeias parece ser muito pequena, ou completamente desproporcionada desde que Lisboa passou a receber 50 mil turistas por dia.

Nas outras capitais europeias, a triagem do lixo nos centros históricos é feita dentro de casa utilizando sacos plásticos padronizados, comprados ou fornecidos gratuitamente pelas autarquias, e, consoante o tipo, recolhidos todos os dias ou só em alguns dias da semana mas sempre de acordo com um calendário partilhado com antecedência.

Este era também o sistema que vigorava nos bairros históricos da nossa capital até dezembro de 2018 mas, uma vez que, ao contrário de pelo menos uma dúzia de outras cidades portuguesas, incluindo o Porto, em Lisboa nunca houve recolha geral de lixo ao domingo, o sistema em apreço redundava em acumulação na rua, até pelo menos segunda-feira à noite, de sacos de resíduos inorgânicos que os restauradores e os residentes não conseguiam acomodar dentro dos seus estabelecimentos e casas.

Para resolver esse problema, em lugar de pura e simplesmente passar também a recolher o lixo ao domingo, a autarquia não achou melhor solução do que regressar ao sistema de contentores, que já vigorara anteriormente com péssima recepção na medida em que os utentes eram obrigados a conservá-los durante o dia dentro dos prédios, que nas zonas mais antigas da cidade raramente têm condições para o efeito.

Consequentemente, desde janeiro de 2019 que os novos contentores, doravante diferenciados por tipo de resíduos, foram permanentemente instalados em cima de passeios que nas ruas muito estreitas dos bairros históricos são também eles muito estreitos obrigando por isso os residentes, amiúde idosos, a usar o leito rodoviário da rua para poderem seguir o seu caminho.

Escusado será dizer que o regresso ao sistema dos contentores, ainda que desta feita diferenciados entre si e fixados aos passeios, apesar de pomposamente designados por ecopontos, não só não resolveu como agravou o problema da insalubridade das ruas.

Desde logo porque os residentes deixaram de fazer a triagem dentro de casa e de se sentir obrigados a usar sacos plásticos padronizados, e passaram a deitar o lixo nos contentores a qualquer hora do dia ou da noite, no que são naturalmente imitados pelos turistas em regime de alojamento local que frequentemente comem, e sobretudo bebem, muito, nos apartamentos que arrendam.

Acresce que muitos dos ecopontos são na realidade meros múltiplos de contentores de lixo indiferenciado que, portanto, estão sistematicamente imundos e por conseguinte atraem nuvens de varejeiras o que obriga os residentes nos apartamentos circundantes a manter as janelas permanentemente fechadas para que elas não entrem nas suas cozinhas e casas de jantar.

A lavagem das ruas que ainda em 2019 era regular e generalizada nos bairros históricos, e poderia mitigar a insalubridade causada pelo infausto sistema de contentores fixos, e pelo crescimento exponencial dos dejetos caninos e das beatas de cigarros, acabaria por definhar nas ruas predominantemente residenciais para poder ser intensificada nas ruas onde entretanto proliferaram sem qualquer controle restaurantes e bares, e respetivas esplanadas, para satisfazer as expectativas do turismo de baixo valor que a falta de políticas públicas adequadas atraiu à capital.

Ao ponto de em certas ruas, como, por exemplo, na Rua de Santa Catarina, a lavagem ser feita apenas do lado dos hotéis, dos restaurante e do acesso ao antigo Jardim do Adamastor, convertido desde o fim da pandemia em palco de espectáculos musicais espontâneos até às 23 horas de todas as noites, deixando o outro lado da rua, o residencial, em cima de cujo passeio passaram a ter que estacionar os carros dos residentes para libertar o espaço em frente aos estabelecimentos mais influentes da indústria de hospitalidade, não obstante ser nesse lado da rua que se acumulam os dejetos dos cães dos residentes e os copos e garrafas dos frequentadores do Bairro Alto que a altas horas da noite passam ruidosamente em direção a Santos.

A lavagem das ruas nos bairros históricos terá também definhado porque as autarquias lisboetas acharam que esse era um domínio em que podiam fazer poupanças imediatas, a fim de libertar recursos para outras finalidades sociais mais rentáveis em termos eleitorais, em detrimento do investimento em soluções alternativas de longo prazo, como seria a utilização da água do rio ou a utilização da água resultante do tratamento dos esgotos.

O regresso a um cenário caro e cuja insuficiência fora já demonstrada no passado recente, poderia no entanto ter sido evitado se a sua adopção tivesse sido menos opaca e os munícipes tivessem sido convidados a pronunciar-se por referendo, e não através de órgãos consultivos sem respaldo constitucional, sobre diferentes cenários de recolha do lixo doméstico bem definidos e orçamentados e sobretudo bem debatidos.

A par da degradação da salubridade do espaço público, fruto de maus hábitos, do método errado de recolha do lixo e de falta de manutenção, assistimos a uma intensificação da pichagem das fachadas e dos equipamentos urbanos, incluindo os centenários elevadores históricos, sem que as autarquias da capital reajam com a necessária energia, instalando câmaras de videovigilância dos objetos mais preciosos, incumbindo a polícia municipal da identificação geral das ocorrências e mobilizando prontamente as empresas que já usam para lavar as superfícies afetadas quando os munícipes se queixam.

Havendo ainda dúvidas sobre qual é o sentimento dos munícipes sobre o tema, nada como convocar um referendo municipal sobre ele e alimentar o debate prévio com análises comparativas da eficácia das soluções adoptadas noutras capitais europeias e respetivos custos.

Em suma esperemos que a insalubridade crescente dos bairros históricos da capital não seja afinal a demonstração do ostracismo de que se queixam os munícipes que, contra a vontade dos promotores imobiliários que há décadas circulam livremente pelos corredores do poder, ainda residem nos bairros históricos e portanto cuja qualidade de vida depende intensamente da salubridade e da seguranca do espaço público que é missão secular das autarquias proteger.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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