Como pode a UE mudar o estatuto de conservação dos lobos se ainda estão em risco?

Conselho da UE apoiou proposta de alteração do estatuto de conservação do lobo. Em teoria, passará a ser possível caçar lobos, mas UE diz que vai tentar manter um estado de conservação “favorável”.

Foto
Actualmente, já é possível pedir "derrogações" para abater lobos na União Europeia. Poderá tornar-se mais fácil matar lobos RAFAEL MARCHANTE
Ouça este artigo
00:00
07:20

Exclusivo Gostaria de Ouvir? Assine já

O Conselho da União Europeia decidiu oficialmente, esta quinta-feira, apoiar a proposta da Comissão Europeia de alteração do estatuto de conservação do lobo, depois da decisão tomada pelos embaixadores dos Estados-membros numa reunião na quarta-feira. A decisão foi apoiada por quase todos os países da UE – incluindo Portugal –, à excepção de Espanha e Irlanda.

De acordo com um comunicado, emitido depois de a decisão ter sido tomada no Conselho de Competitividade, “a alteração proposta permitirá uma maior flexibilidade na resposta aos desafios socioeconómicos decorrentes da expansão contínua da área de distribuição do lobo na Europa”, nomeadamente a coexistência dos lobos com as comunidades rurais onde não existem ainda medidas de prevenção.

A Comissão Europeia poderá agora apresentar ao secretariado da Convenção de Berna a proposta de alteração do estatuto do Canis lupus de espécie da fauna “estritamente protegida” para espécie da fauna “protegida”. A proposta deve ser entregue já nos próximos dias, já que o Comité Permanente da Convenção de Berna, responsável pela avaliação do estado de conservação das espécies, vai reunir-se entre 2 e 6 de Dezembro e as propostas devem ser enviadas até 1 de Outubro.

Na quarta-feira, um grupo de 23 eurodeputados de vários partidos, liderados pela luxemburguesa Tilly Metz (do grupo dos Verdes), enviou uma carta à presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, apelando a que não reduza o estatuto de protecção dos lobos no âmbito da convenção de Berna nem na legislação europeia. “A intenção de reduzir o estatuto de protecção do lobo não tem base científica nem factual, mas é apenas uma brincadeira política”, escrevem.

O que é a Convenção de Berna?

A Convenção de Berna, adoptada em 1979 e que entrou em vigor em 1982, é o tratado do Conselho da Europa sobre a conservação e a protecção das espécies de fauna e flora selvagens e dos seus habitats naturais. A UE e os seus 27 Estados-Membros são “partes contratantes” na Convenção de Berna, num total de 50 países e entidades que ratificaram a convenção.

A convenção impõe obrigações jurídicas às partes contratantes, protegendo mais de 500 espécies de plantas selvagens e mais de mil espécies de animais selvagens.

O Comité Permanente da Convenção de Berna, o órgão de decisão do tratado, reúne-se anualmente em Estrasburgo. A alteração do estatuto de protecção do lobo no âmbito da Convenção de Berna, explica o Conselho, é uma condição prévia para qualquer alteração correspondente do seu estatuto a nível da UE.

O que acontece se a proposta for aceite?

A espécie do lobo (Canis lupus) está actualmente classificada como uma espécie “estritamente protegida” (anexo II da Convenção de Berna), o que significa que as partes na convenção devem adoptar medidas para a sua conservação.

O estatuto de protecção dos lobos ao abrigo da Directiva Habitats já prevê, contudo, a possibilidade de “derrogações”: em 2019 e 2020, os Estados-Membros comunicaram 772 derrogações para o abate de grandes carnívoros para evitar danos graves ao gado, escreve a plataforma Eurogroup For Animals. De acordo com um relatório do Parlamento Europeu, em 2018, estima-se que mais de 900 lobos são mortos todos os anos na UE.

Se a proposta de alteração da Comissão for aceite, o lobo passará para a lista das espécies “protegidas” (anexo III da Convenção de Berna), o que significa que a protecção da espécie deve ser assegurada “através de medidas adequadas e necessárias”. Em comunicado, o Conselho da UE explica que “qualquer exploração da espécie deve manter a população de lobos fora de perigo e estar em conformidade com os requisitos científicos e ecológicos, entre outros”.

Desde 2006, a Suíça já propôs em três ocasiões (2006, 2018 e 2022) a redução do estatuto de protecção da espécie Canis lupus e, por conseguinte, de todas as populações de lobo abrangidas pela Convenção. Estas propostas, contudo, não foram adoptadas pelo Comité Permanente, por não terem recolhido apoio suficiente das partes contratantes.

Como assim? Vai-se poder caçar lobos?

Embora as espécies “protegidas” não estejam sujeitas às proibições de abate ou de destruição dos locais de reprodução e de repouso que existem para as espécies “estritamente protegidas”, a Convenção de Berna exige que sejam tomadas “medidas legislativas e administrativas adequadas e necessárias” para proteger as espécies da fauna selvagem do Anexo III.

“Qualquer exploração [destas espécies] deve ser regulamentada de forma a manter as populações fora de perigo”, refere ainda a convenção. Essa protecção pode incluir períodos de defeso, a proibição temporária ou local da exploração para restabelecer níveis populacionais satisfatórios, e a “regulamentação da venda, detenção para venda, transporte para venda ou oferta para venda de animais selvagens vivos e mortos”.

Ou seja, em teoria, passará a ser possível a caça do lobo. Porém, o Conselho da UE garante que serão tomadas medidas para garantir “um estado de conservação favorável para todas as populações de lobo na UE”. Em Portugal, o Governo já garantiu que o nível de protecção do lobo-ibérico previsto na lei nacional não irá baixar.

Como evoluiu a recuperação do lobo?

De acordo com a União Europeia, o estado de conservação do lobo tem registado uma tendência positiva nas últimas décadas. “A espécie recuperou com sucesso em todo o continente europeu e a população estimada quase duplicou em dez anos (de 11.193 em 2012 para 20.300 em 2023)”, refere o comunicado do Conselho.

De acordo com um estudo elaborado pela Iniciativa Europeia para Grandes Carnívoros (LCIE) para a Convenção de Berna em 2022, citado na proposta da Comissão, as populações estavam a aumentar em 17 dos 24 Estados-Membros da UE com lobos, e nos restantes sete países estavam estáveis ou em flutuação.

O LCIE considerou, assim, que os lobos não estavam a diminuir em nenhum Estado-Membro da UE – uma conclusão que tem algumas limitações, por exemplo, devido à falta de censos actualizados em países como Portugal.

Há dados mais específicos?

Olhando para os dados mais finos, torna-se mais claro que a recuperação do lobo não é uniforme em todo o território europeu.

A nível da UE, a última avaliação do estado de conservação do lobo no âmbito da Directiva Habitats abrangeu o período de 2013-2018, tendo como base os relatórios apresentados em 2019 pelos Estados-Membros. Na altura, foi comunicada a presença do lobo em 21 países da UE, com uma população global estimada entre 11 mil e 17 mil indivíduos (a estimativa mais precisa ficou-se entre os 13.492 lobos).

Os relatórios revelaram que a espécie se encontrava “num estado de conservação favorável em 18 das 39 partes nacionais das regiões biogeográficas onde a espécie estava presente”, ou seja, em pouco menos de metade dos territórios. Em Portugal, por exemplo, a espécie continua em risco de extinção, com uma população que rondava, há 20 anos, os 300 indivíduos em território nacional.

Quais são os próximos passos?

Depois de analisada pelo comité, caso tenha parecer favorável, a alteração à Convenção de Berna deve ser adoptada por dois terços dos subscritores da convenção. As alterações aos anexos entram em vigor três meses após a sua adopção.

A alteração do nível de protecção do Canis lupus, contudo, não será imediatamente aplicável na UE, explica o comunicado do Conselho. “Quando a alteração dos anexos da Convenção de Berna entrar em vigor, a UE terá a possibilidade de alterar os anexos correspondentes da Directiva Habitats – a legislação comunitária que aplica a Convenção de Berna – a fim de adaptar o nível de protecção dos lobos na sua ordem jurídica interna.”