O Líbano está em guerra: ataques de Israel matam pelo menos 492 pessoas, incluindo 35 crianças
Durante a tarde, o Ministério da Saúde libanês contabilizara mais de mil feridos e o Governo anunciava que as escolas iam abrir como abrigos de emergência.
Para dezenas de milhares de pessoas no Norte de Israel e no Sul do Líbano, a guerra começou há quase um ano. De acordo com o Governo israelita, 60 mil saíram das suas casas em cidades e aldeias junto à fronteira libanesa – é para que possam regressar a casa, diz, que lançou o que chama “nova fase do conflito”. Do outro lado da fronteira, dezenas de milhares fugiram (90 mil até segunda-feira, diz a ONU), muitos não tiveram para onde fugir e centenas foram mortos até à semana passada. O que agora se passa é diferente: com os maiores bombardeamentos de que os libaneses têm memória, Israel levou a guerra a todo o país.
Primeiro, os ataques centraram-se no Sul, depois no Leste e, ao final do dia, em Beirute.
As autoridades falam do dia “mais mortífero” no Líbano desde o fim da guerra civil, em 1990, e no maior êxodo de pessoas desde a guerra de 2006 entre Israel e o Hezbollah. Em poucas horas, as Forças de Defesa de Israel (IDF) realizaram centenas de ataques e mataram pelo menos 492 pessoas, incluindo 35 crianças, assim como “mulheres e paramédicos”, e deixaram mais de 1600 feridas (segundo um balanço feito ao final do dia pelo Ministério da Saúde libanês).
As vítimas incluem dezenas de membros do Hezbollah, mas também muitos civis, tal como aconteceu com as duas vagas de explosões de bipes e walkie-talkies usados pela milícia xiita, na terça e quarta-feira da semana passada, e com todos os bombardeamentos que se seguiram.
As creches foram fechadas, e as escolas, encerradas devido à violência, reabriram para funcionar como abrigos de emergência.
Uma imensidão de carros entupiu as estradas do pequeno Líbano, com os habitantes que tentavam escapar do Sul em direcção ao Norte e a Beirute, e os que tentavam abandonar a capital e maior cidade do país, na costa do Mediterrâneo, não é certo com que destino.
“Ainda não se chama oficialmente uma guerra, mas tem todas as características de uma. Os decisores e os analistas podem referir-se a ela como uma escalada, mas para aqueles que vivem as suas consequências – para a família que chora os seus entes queridos perdidos, o casal cuja casa hipotecada está agora em ruínas, a mãe cujo filho nunca mais voltará – isto é uma guerra”, escreveu na rede X (antigo Twitter), já no sábado, o jornalista Ali Hashem, correspondente da Al-Jazeera e colaborador de vários media árabes. “Não há outra palavra no dicionário que a capte com mais exactidão.”
Os bombardeamentos de segunda-feira deixaram ainda mais libaneses com a certeza de que vivem agora num país em guerra, mas o pânico começou a espalhar-se logo depois de milhares de pagers usados pela milícia xiita libanesa terem explodido em simultâneo em casas, ruas ou lojas.
No dia seguinte, explosões de walkie-talkies sucederam-se um pouco por todo o lado, incluindo num funeral de dois membros do Hezbollah, de uma criança e de uma enfermeira, em Beirute. Num relato publicado pelo jornal israelita The Times of Israel, Um (mãe) Ibrahim, “apanhada no caos” implorou a um jornalista que a deixasse usar o seu telemóvel para ligar aos filhos. “Desliguem os vossos telefones agora!”, gritou-lhes, quando o principal medo era que qualquer dispositivo de comunicação pudesse explodir a qualquer momento, e não ainda que uma bomba pudesse atingir qualquer casa.
Os ataques aos bipes e os mais de 2800 feridos que provocaram chegaram para deixar os hospitais sem capacidade de resposta, com os médicos a tentarem reagir à imensidão de feridos, muitos que perderam um olho ou tiveram mãos amputadas. Nesta segunda-feira, o Ministério da Saúde pediu a todos os hospitais do Sul e do Leste a “suspensão das cirurgias não essenciais” para permitir “o tratamento dos feridos devido à expansão da agressão israelita”.
Os avisos para a dimensão dos bombardeamentos começaram a chegar aos telefones dos libaneses ainda durante a madrugada, com dezenas de milhares de chamadas automáticas alertando que as IDF planeavam aumentar as suas operações – primeiro no Sul; ao início da tarde, os alertas dirigiram-se aos habitantes do Vale de Bekaa, no Leste do país, junto à fronteira com a Síria.
Os telefonemas, seguidos de declarações dos porta-vozes das IDF, repetiram a mesma mensagem, dizendo às pessoas que se afastassem “pelo menos mil metros” de qualquer posição do Hezbollah, incluindo “edifícios ou casas onde estão armazenados mísseis e armas”, como se os civis libaneses soubessem todos onde é que a milícia apoiada pelo Irão esconde as suas armas. “Afastem-se imediatamente!”, disse o porta-voz, Daniel Hagari, num “aviso específico para os residentes do Vale do Bekaa”. Façam-no “no prazo de duas horas” e dirijam-se “à escola mais próxima”, ordenou na mesma altura o porta-voz das IDF para os media árabes, Avichay Adraee.
Mais tarde, foi o próprio primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, a avisar os libaneses para "saírem do caminho do perigo". “Por favor, saiam do caminho do perigo agora. Quando a nossa operação terminar, podem regressar em segurança às vossas casas”, disse Netanyahu numa declaração em vídeo, segundo o jornal The Guardian.
Segundo os próprios militares israelitas, foram atacados cerca de 1300 alvos, incluindo “edifícios onde o Hezbollah escondia rockets, mísseis, lançadores, drones e outras infra-estruturas terroristas”. Mas a verdade é que, tal como as explosões dos pagers não podem ser descritas como ataques “de precisão”, tendo em conta o facto de ser impossível prever onde explodiriam e quem atingiriam, raides desta dimensão e natureza não são possíveis sem muitas vítimas civis.
“O Sul do Líbano é o Líbano. Bekaa é o Líbano. Dahye [bairro nos subúrbios da capital conhecido por ser um bastião do Hezbollah que tem sido alvo de muitos bombardeamentos] é Beirute. Não são entidades separadas só porque Israel o diz”, escreveu na X a jornalista libanesa Farah-Silvana Kanaan. “O Líbano é pequeno. Tudo está perto. Eles estão a bombardear o Líbano. Estão a matar libaneses”, sublinhou. “Querem reocupar um pedaço da nossa terra. Não vão conseguir”, acrescenta.
Rockets chegam mais longe
Numa análise publicada no Haaretz, o colunista Alon Pinkas, ex-cônsul-geral de Israel em Nova Iorque, sublinhou que a ideia de “uma ‘guerra limitada’” não existe no Líbano. “Quem usa esse termo ou esqueceu convenientemente a história, ou não compreende o ambiente actual”, defende.
Em resposta, o Hezbollah lançou perto de 200 rockets, os primeiros contra alvos militares no Norte de Israel; mais tarde, o grupo libanês disparou pelo menos dez rockets de longo alcance (os primeiros nesta guerra, segundo o jornal The Times of Israel) contra colonatos na Cisjordânia ocupada, “a mais de 100 quilómetros da fronteira”.
Ali Hashem escreve que as sirenes soaram pela primeira vez “a leste de Telavive” e que os colonatos visados se encontram a 120 quilómetros, descrevendo esta como “a maior distância” atingida pela milícia “na história do conflito entre o Hezbollah e Israel”.
“À medida que o número de mortos no Líbano aumenta, aumenta também o número de rockets e a sua profundidade no Norte de Israel, arrastando milhões de pessoas de ambos os lados para o ciclo da violência”, escreveu na rede X Mairav Zonszein, jornalista e analista do conflito israelo-palestiniano no think tank International Crisis Group. “O que é que isto vai conseguir? Onde está o fim?”