Pacto para o Futuro adoptado pelas Nações Unidas para tentar salvar o multilateralismo
Ao fim de uma longa jornada diplomática, acordo foi aprovado pela Assembleia Geral das Nações Unidas no arranque da Cimeira do Futuro, convocada pelo secretário-geral da ONU, António Guterres.
A Cimeira do Futuro arrancou este domingo, em Nova Iorque, com a adopção do histórico Pacto para o Futuro. Resultado de um ano e meio de negociações intergovernamentais, o acordo pretende ser um roteiro para as transformações necessárias nas estruturas das Nações Unidas para cumprirem os seus objectivos num mundo mergulhado em crises cada vez mais complexas.
O encontro de alto nível, convocado pelo secretário-geral da ONU, António Guterres, com o objectivo de “revigorar e restaurar a confiança no multilateralismo”, termina na segunda-feira. O Pacto para o Futuro inclui ainda dois anexos: o Pacto Digital Global e a Declaração sobre as Gerações Futuras.
“Estamos aqui para trazer o multilateralismo de volta da beira do precipício”, afirmou António Guterres, no seu discurso logo após a aprovação do pacto, salientando as possibilidades abertas pelo novo acordo: mais força para os esforços de consolidação da paz, o primeiro “apoio multilateral acordado sobre desarmamento nuclear” em vários anos, uma “resposta coordenada aos grandes choques globais”, “reformas inovadoras na arquitectura financeira internacional” e um enorme “impulso para os Objectivos do Desenvolvimento Sustentável e o Acordo de Paris”
Aliás, como tem sido habitual, Guterres deixou duras palavras sobre a necessidade de um compromisso mais forte sobre o fim dos combustíveis fósseis: “A crise climática está a destruir vidas, a devastar comunidades e a prejudicar as economias. Todos conhecemos a solução: uma eliminação gradual de todos os combustíveis fósseis. E, contudo, as emissões estão a aumentar.”
Alguns dos pontos da declaração que têm atraído mais atenções são os que poderão lançar as bases para uma revisão do funcionamento do Conselho de Segurança da ONU e os que abrem caminho a uma reforma da arquitectura financeira mundial (em particular no que toca a instituições como o FMI e o Banco Mundial), sistemas desenhados no pós-Segunda Guerra Mundial, num período onde ainda imperava o domínio colonial sobre muitos países.
Tentativa de bloqueio
As propostas plasmadas no Pacto para o Futuro, um documento “orientado para a acção”, visam reforçar a cooperação global e uma melhor adaptação do multilateralismo aos desafios contemporâneos, de olhos postos nas gerações futuras. As negociações para este pacto foram co-facilitadas pela Alemanha e Namíbia, contando a Cimeira com a presença do chanceler alemão, Olaf Scholz.
As negociações sobre a redacção exacta do documento final prosseguiram até à última hora. Um grupo de países - Bielorrússia, República Democrática da Coreia, Irão, Nicarágua, Rússia e Síria - apresentaram uma proposta de alteração no sábado à noite para reforçar a soberania nacional, tentando introduzir uma emenda a referir que “as Nações Unidas e o seu sistema não devem intervir em questões que estejam essencialmente sob a jurisdição nacional de qualquer Estado.”
O representante da Federação Russa apelou ao plenário que se continuassem as negociações, com os detalhes a serem “trabalhados ao longo da cimeira”, “até que o documento seja aceitável por todos, sem excepções”. Contudo, uma moção proposta pelo Congo para que não fosse tomada nenhuma acção na sequência da emenda apresentada acabou por ser adoptada pela Assembleia Geral da ONU com 143 votos a favor, sete contra e 15 países a absterem-se – ignorando, assim, as objecções colocadas e prosseguindo para a aprovação por consenso (e não por unanimidade) do Pacto para o Futuro.
“Não podemos retroceder”
O Presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, foi um dos primeiros e mais contundentes chefes de Estado a tomar a palavra após a adopção do Pacto para o Futuro, sendo categórico sobre a urgência de reformas nas Nações Unidas, denunciando os “duplos padrões” do Conselho de Segurança e a perda de vitalidade da Assembleia Geral da ONU. Num gesto de reprovação aos países que tentaram atrasar a aprovação do pacto, o presidente brasileiro foi peremptório: “Não podemos retroceder.”
“O Sul global não está representado o suficiente tendo em conta o seu actual peso político e económico”, afirmou o presidente brasileiro, aplaudindo a ambição do Pacto para o Futuro ao “tratar de forma inédita temas importantes” como a reestruturação da dívida de países em desenvolvimento e a tributação internacional, prometendo “recolocar a ONU no centro do debate económico mundial”.
“Os Objectivos do Desenvolvimento Sustentável foram o maior empreendimento diplomático dos últimos anos, e caminham para se tornar o nosso maior fracasso colectivo”, alertou ainda Lula da Silva, afirmando que o Brasil, que ocupa a presidência do G20, irá lançar uma aliança global contra a fome e a pobreza. Enquanto anfitrião da COP30, a cimeira climática que terá lugar em 2025, o Brasil vai propor que os países preparem não apenas um balanço sobre a sua acção climática, mas também um “Balanço Ético Global”, convidando-os a “pensar a acção climática sob o prisma da justiça, da equidade e da solidariedade”.
Pacto Digital e Gerações Futuras
Anexados ao Pacto para o Futuro estão ainda o Pacto Digital Global (co-facilitado pela Suécia e a Zâmbia), que inclui disposições que vão desde o fosso digital às salvaguardas necessárias perante os avanços na utilização de Inteligência Artificial, e a Declaração sobre as Gerações Futuras (conduzida por Jamaica e Países Baixos), com um forte peso no desenvolvimento sustentável, em particular a conservação do planeta.
Outro discurso pujante perante a Assembleia Geral das Nações Unidas foi o de Niria Alicia Garcia, activista xicana pela justiça climática, que alertou para a “hipocrisia” da ausência de referências aos direitos dos povos indígenas e às plantas e animais nos documentos. No seu poderoso discurso, em que alertou para os perigos do “colonialismo verde”, Niria Alicia Garcia exigiu que os líderes mundiais cumpram os seus compromissos: acabar com o militarismo, redireccionar os fundos para países afectados pelas alterações climáticas, proteger os direitos dos povos indígenas e restituir as terras roubadas.
A Cimeira do Futuro foi convocada em 2021 pelo secretário-geral da ONU, António Guterres, no seu relatório A Nossa Agenda Comum, em que lançou as suas propostas para enfrentar os desafios críticos e as lacunas na governança global expostas pelos recentes choques globais. A cimeira tem sido vista também como um esforço que pode vir a definir o legado de Guterres enquanto secretário-geral na ONU, mandato que termina dentro de pouco mais de dois anos. Aprovado o Pacto para o Futuro, resta saber com que urgência as propostas serão convertidas em acções.