O cheiro a morte está sempre a rondar Tiziano Cruz – mas a vontade de “luta” e de “partilha” também
O artista argentino traz o último capítulo da sua trilogia criada após a morte da irmã: Wayqeycuna passa esta quarta-feira por Coimbra, sexta por Matosinhos, e em Novembro chega a Lisboa.
Em 2015, a irmã de Tiziano Cruz morreu por negligência médica, grávida e com apenas 18 anos, num hospital da cidade de San Salvador de Jujuy, na Argentina. “A morte dela não é um caso isolado, é uma prática sistemática que acontece a certos corpos na Argentina: corpos que valem menos do que outros. Deixaram morrer a minha irmã por ser indígena, por falar a língua materna, por estar grávida tão jovem e por ser solteira”, diz o artista interdisciplinar e criador teatral ao PÚBLICO.
Esse acontecimento dilacerou – e reorganizou – a vida de Tiziano Cruz. Começou a construir Tres Maneras de Cantar a una Montaña, trilogia autobiográfica de protesto e resistência, afecto e reconciliação, em que entrelaça memórias de infância, vivências na sua comunidade indígena no Norte da Argentina e manifestos políticos sobre o ecossistema artístico e respectivas hierarquias raciais e de classe. Esta quarta-feira estreia em Portugal o último capítulo dessa trilogia, Wayqeycuna [Meus Irmãos], no Teatro da Cerca de São Bernardo, em Coimbra, no âmbito da mostra Todos São Palco. Na sexta-feira faz escala no Teatro Municipal de Matosinhos Constantino Nery e chegará mais tarde ao Centro Cultural de Belém (Lisboa), a 16 e 17 de Novembro, à boleia do Alkantara Festival.
Tudo começou com Adiós Matepac, moldado em carne viva pela morte da irmã e a “luta legal” do pai “contra o Estado argentino”. Seguiu-se Soliloquio, ancorado em cinquenta e oito cartas escritas à sua mãe durante a pandemia de covid-19. Por fim, nasceu Wayqeycuna, “uma espécie de diário de bordo físico, mais um esforço, para recuperar uma memória e um corpo”, descreve o artista. “Um poema visceral dedicado ao encontro com os meus irmãos”, os de sangue e os do seu povo.
“Em cada apresentação abro as portas da minha casa, da minha comunidade, do meu povo.” A família, directa e indirecta, é o elemento que inspira, atravessa e calibra a obra de Tiziano Cruz, que por causa de Wayqeycuna regressou à sua comunidade. “O reencontro com a minha família permitiu, na minha prática artística, encontrar as minhas próprias formas de contar, narrar e encenar as nossas histórias”, assinala.
Wayqeycuna tem como pano de fundo as montanhas da província de Jujuy, onde habitam várias etnias indígenas da Argentina – um território em disputa por projectos extractivistas de recursos naturais, sobretudo o lítio, que forçam comunidades autóctones a deslocarem-se para poder sobreviver. As vestes, as canções e as tradições do povo San Francisco e Santa Barbara tingem a linguagem visual e teatral de Tiziano, intermediários para uma história em que a poesia, o luto, a morte e a reparação estão num constante corpo a corpo – e nada disto é ficção.
“No início queria tornar-me numa pessoa ‘famosa’ para que quando a minha família caísse novamente nas mãos do sistema de saúde, dissessem: ‘são familiares do Tiziano Cruz, não os podemos deixar morrer’. Nos últimos anos, tornei-me em tudo aquilo que pensava vir a ser, estando nas capas dos jornais, na televisão, nos melhores teatros, prémios e festivais.” Mas nada disso fez grande diferença. Em Março deste ano, quando levou Wayqeycuna ao Brasil, a sua mãe morreu numa cama de hospital “porque a medicação para o cancro nunca chegou”, recorda agora ao PÚBLICO. “A conclusão é que, aconteça o que acontecer, a minha família não está a salvo. E não me refiro apenas à minha família biológica, mas a toda a comunidade indígena que represento.”
Quem pode, ou não, fazer arte?
Wayqeycuna é, em muitos aspectos, um regresso à infância pelos olhos de um adulto que teve de crescer demasiado rápido. “Aquilo que sou agora é feito da infância na minha aldeia. As mães cuidam dos filhos o melhor que podem, e lembro-me disso com muito carinho. Mas há um dia em que se faz nove ou dez anos, e aí já somos adultos: no contexto em que vivo, a adolescência é um privilégio”, nota o argentino.
Depois de os pais se terem separado, mudou várias vezes de poiso com os irmãos. “A minha mãe trabalhava como uma escrava, dia e noite, para conseguir alugar um quarto onde dormíamos todos. Mudávamos de quarto umas oito vezes por ano.” Foi nessa altura que Tiziano descobriu a cidade, o que era a classe média, o que eram famílias com carro e casa própria. “’Se existe, eu também quero’, pensei. Então camuflei-me na classe média todos estes anos”, afirma. “Através da negação, é possível sobreviver neste mundo hostil. Não há outra forma: ou negas ou matam-te, e aqui não há metáforas.”
Tiziano admite que só nos últimos anos é que conseguiu “aceitar” a sua identidade indígena. “Eu pertenço a uma geração a que chamo de ‘desindigenizada’, pois muitos de nós não falam a língua materna, e isso tem a ver com o facto de as nossas avós terem tido as suas línguas cortadas para não poderem transmitir os idiomas – e aqui também não há metáfora, é literal”, aponta o artista. O reconhecimento das suas raízes foi crucial para definir a sua prática artística. “A minha cosmogonia é indigenista, que baseia a sua filosofia de vida na comunidade. Tudo isso está nas minhas obras, que funcionam como portas que se abrem para nos conhecer.”
Nesse sentido, este artista que chegou ao teatro “por engano” (em 2010, quando se mudou para outra província da Argentina, foi a um espaço cultural à procura de fazer dança, mas só havia vagas para teatro), busca “outras teatralidades” que fintem o “teatro aristotélico” para elites. “Não sei se já encontrei maneira de matar o meu pai artístico, mas juro que tento e volto a tentar”, sublinha.
Uma dessas tentativas aconteceu com a segunda criação desta trilogia, Soliloquio. De maneira a contrariar o espectáculo enquanto “produto de mercado” – ou seja, “que chega a uma cidade, é apresentado e no dia seguinte segue para outro festival” –, Tiziano decidiu rastrear cada território, convocar as comunidades indígenas e latinas, ouvi-las, e negociar com os festivais para que estas possam ser remuneradas e participarem, de alguma forma, no espectáculo. Já com Wayqeycuna, cada apresentação é antecedida por workshops de pão, que em muitos casos servem como elo de ligação a grupos sociais normalmente afastados do circuito artístico institucional.
“No Brasil trabalhámos com pessoas que vivem em situações de rua extremamente vulneráveis; na Argentina estivemos numa favela com uma organização de mulheres que presta ajuda a mulheres alvo de violência de género; e agora em Matosinhos vamos fazer a oficina com jovens da APPACDM - Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental.” Nestes workshops, Tiziano procura esbater fronteiras “entre a arte e a comunidade”. Os pães são integrados no espectáculo, com o objectivo de “problematizar quem pode, ou não, criar uma obra ou um objecto de arte.”
Uma questão que acaba por estar sempre presente em Wayqeycuna, onde se questiona a falta de consciência de classe no meio das artes e a capitalização de ideias de diversidade. Há muita teoria, pouca prática, considera Tiziano, que foi bolsista do Fondo Nacional de las Artes e do Instituto Nacional del Teatro, em Buenos Aires.
“Vivemos num mundo da arte onde é muito fácil falar de decolonialismo ou indigenismo, mas muitas vezes estes conceitos permanecem no discurso. Os meus irmãos e irmãs indígenas, latino/as, diaspórico/as ainda estão nas fábricas a trabalhar de forma inóspita, a limpar e a esfregar as casas da classe média-alta, a trabalhar de graça em hotéis, a cuidar de crianças e idosos”, diz. “Não temos nenhum problema com o tokenismo ou a exoticização, isso é um problema da esquerda letrada, que tanto mal nos tem feito: essa esquerda não fala com o meu povo", acrescenta. "Por isso acho fundamental que nós, os/as indígenas, contemos as nossas histórias. Não precisamos mais que falem por nós.”
É isso que Tiziano Cruz faz em Wayqeycuna, onde se declara “um pobre fugitivo que procura refúgio nas instituições de arte para não morrer”. E aqui, novamente, também “não há metáfora”. Mas há um desejo de reconciliação – ou, pelo menos, de um outro patamar de diálogo. “Não podemos ganhar esta batalha cultural sem a aliança de todos; é isso que venho fazer em todas as cidades. Já sabemos o que o colonialismo nos fez, e quem são os culpados, mas não há tempo para continuar a aprofundá-lo, porque é uma questão de vida ou morte.” E Tiziano Cruz está vivo, bem vivo, a tentar germinar dentro de si “o conceito de esperança”. Regressar a casa foi um passo em frente, como mostra em Wayqeycuna.
“Os meus pais não tinham ferramentas para criar um filho homossexual. Fizeram o que outros pais na periferia fazem: expulsam os filhos para a rua, para se desenrascarem sozinhos. Na Argentina, a esperança de vida de um gay que faz trabalho sexual para evitar a fome não ultrapassa os 30 anos”, conta Tiziano. “A morte da minha irmã foi o acontecimento que me permitiu perdoar e regressar à minha aldeia.” Agora, juntamente com o pai, orienta projectos para adolescentes, a faixa etária onde mais se têm registado suicídios naquela região, “por falta de perspectivas de futuro”.
O cheiro a morte está sempre a rondar Tiziano Cruz – mas a vontade de “luta” e de “partilha” também.