O Pólo Sul da Lua pode ser uma Arca de Noé da vida na Terra

Criar um repositório das espécies terrestres na Lua é a proposta de um grupo de cientistas norte-americanos. Pode ser um seguro para a vida na Terra, e o início da colonização de outros planetas.

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O repositório na Lua seria uma garantia, em caso de perda da vida na Terra, por causa de desastres naturais, alterações climáticas, eesgotamento de recursos, guerras e outros problemas Raneen Sawafta/REUTERS
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Os alertas sobre a perda de biodiversidade na Terra chegam de todo o lado. Há pelo menos 45 mil espécies em risco de extinção, segundo a mais recente avaliação da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN). Mas um grupo de cientistas norte-americanos propõe uma ideia arrojada para garantir a viabilidade dos ecossistemas terrestres e, ao mesmo tempo, preparar um futuro em que a humanidade possa viajar pelas estrelas e precise de criar condições para tornar outros planetas habitáveis: criar um repositório biológico no Pólo Sul da Lua.

A ideia é preservar congeladas células, mais precisamente fibroblastos (estão envolvidas na cicatrização e têm por principal função a manutenção da integridade do tecido conjuntivo).

“Seria um repositório de células vivas e não apenas de ADN. O que é bom nos fibroblastos é que sabemos como criopreservar estas células na maior parte das espécies de vida selvagem, o que não acontece com outros tipos de células, como espermatozóides e embriões. Os fibroblastos são uma escolha perfeita para este repositório”, assegurou ao Azul, numa resposta por email, Mary Hagedorn, investigadora principal do Instituto de Biologia da Conservação do Zoológico Nacional Smithsonian (Estados Unidos), a primeira autora do artigo da revista BioScience em que a ideia é apresentada.

O objectivo de manter este banco de fibroblastos de várias células seria poder cultivá-las para obter células estaminais, as células que surgem no início desenvolvimento embrionário, e clonar as várias espécies. Seria uma espécie de Arca de Noé congelada.

Seriam seleccionados animais, plantas e outros organismos considerados prioritários para “salvaguardar a biodiversidade da Terra e apoiar a futura exploração espacial e terraformação de planetas”, propuseram os cientistas na revista BioScience. “Terraformar” significa tornar mais parecido com a Terra, o nosso planeta, e é um conceito explorado na ficção científica, mas também por cientistas a sério, que tentam projectar o futuro para além do nosso planeta.

E a dimensão ética?

Para tornar Marte habitável, por exemplo, seria necessário que o quarto planeta do Sistema Solar passasse por um processo deste tipo, que incluiria modificar a atmosfera de forma a que chovesse e houvesse água líquida à superfície, para que pudesse começar a haver vegetação, por exemplo… E seriam necessários micro-organismos, plantas e animais para fazer essa transformação.

“A proposta é preservar grupos funcionais, e não apenas espécies em particular”, explicou Mary Hagedorn. Quer isto dizer que em vez de tentar salvar o património genético do elefante-de-Bornéu, ou do lince-ibérico (preservando as suas células congeladas), só para mencionar duas espécies em risco ou vulneráveis, o foco estará na conservação de ecossistemas.

“Queremos preservar a função dos ecossistemas da Terra, e não espécies ameaçadas em si. Podemos ajudar a salvar algumas espécies, mas o objectivo não é apenas esse”, sintetizou Mary Hagedorn. “O repositório poderia conservar biomateriais úteis para alimentação, filtragem, decomposição microbiana, e engenharia de ecossistemas”, descreve a equipa no artigo.

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Imagem da Lua em órbita da Terra obtida pela sonda Galileu a 8 de Dezembro de 1992 NASA/JPL

Seria uma espécie de seguro de vida do nosso planeta. “Este repositório salvaguardaria a biodiversidade e funcionaria como uma garantia em caso de perda da vida por causa de desastres naturais, alterações climáticas, sobrepopulação, esgotamento de recursos naturais, guerras, ameaças socioeconómicas e outros problemas que aconteçam na Terra”, justificam os investigadores.

Em boa verdade, a Lua não está imune a catástrofes naturais ou, até, eventualmente, consequências de guerras… “Correcto, mas a probabilidade de desastres na Lua é mais baixa do que na Terra”, salienta a cientista norte-americana.

Mas toda esta ideia não tem uma dimensão ética? O risco de contaminação acidental de um outro planeta com formas de vida da Terra não pode tornar-se em si uma catástrofe? “Grande pergunta! Estamos a trabalhar com especialistas em ética. As questões de ética são dos principais problemas com os quais teremos de lidar”, reconhece Mary Hagedorn.

No frio do Pólo Sul... lunar

Porquê o Pólo Sul da Lua, recentemente visitado por sondas chinesas? “A armazenagem a longo prazo de células vivas de animais exige temperaturas de 196 graus Celsius negativos ou menos, para que seja suspensa toda a actividade biológica. E não há local nenhum na Terra suficientemente frio para armazenar amostras animais sem que seja necessária intervenção humana”, explicou Mary Hagedorn.

O Pólo Sul da Lua parece a escolha ideal. “Há alguns locais que chegam a 196 graus negativos, e alguns permanecem constantemente abaixo de 223 graus negativos. Especialmente nos pólos, onde crateras profundas ficam permanentemente na sombra”, justificam os cientistas. A latitudes mais médias há também tubos de lava que podem atingir as temperaturas geladas necessárias para preservar as células. “Se pudéssemos escavar até dois metros abaixo da superfície, as amostras ficariam a salvo da radiação”, sublinha Mary Hagedorn.

A ideia é que este seja um repositório passivo: isto quer dizer que não ficaria dependente de que se gerasse energia para manter as temperaturas ultrabaixas, uma vez que estava no Pólo Sul. “O nosso objectivo é que seja completamente automatizado”, frisou a investigadora.

Seria algo semelhante ao Cofre-Forte de Sementes Global de Svalbard, na Noruega, que não precisa de pessoas nem de energia para que as sementes se mantenham a 18 graus negativos, por causa da temperatura do solo permanente gelado que o rodeia. No entanto, as alterações climáticas ameaçam a estabilidade do banco de sementes de Svalbard. “Mas na Lua não há atmosfera e, por isso, não há a ameaça das alterações climáticas”, lê-se no artigo.

A equipa que avança a ideia propõe como organismo de teste o Asterropteryx semipunctata, um peixinho da ordem dos góbis, que tem mais de 2200 espécies. “Usamo-lo, porque é pequeno, não corre risco de extinção, é fácil de gerir e temos dados sobre a criopreservação das suas células estaminais”, explicou Hagedorn. “Vamos testar a sensibilidade dos fibroblastos criopreservados [do góbi] à quantidade de radiação a que estariam sujeitos numa viagem até à Lua e de regresso à Terra.”

A radiação pode afectar a viabilidade de as células se desenvolverem e serem usadas para criar novos exemplares da espécie, através de técnicas de clonagem – actualmente encaradas como uma esperança para recuperar espécies em risco. “Guardaríamos fibroblastos de pelo menos 100 indivíduos, seja de que espécie for, para manter a sua diversidade genética”, explicou Mary Hagedorn.

Séculos e séculos

Uma vez criopreservado, mantido neste repositório gelado que não precisa de energia nem de manipulação humana, o material biológico depositado na Lua pode conservar-se por tempo indefinido. Os cientistas falam em centenas de anos. “Se estiver devidamente criopreservado, basicamente fica em estase [sem alterações] para sempre”, diz a investigadora do Zoológico Smithsonian. “Aquecimento ocasional e radiação são desafios à preservação, mas se pudermos criar defesas adequadas, estas amostras podem manter-se estáveis durante séculos.”

Mas vamos a ver: isto será um projecto extremamente caro? “Não sabemos os custos, mas será caro”, reconhece Hagedorn. Porém, se houver dinheiro suficiente e a agência espacial norte-americana NASA apoiar o projecto, não é algo que esteja fora de alcance a curto prazo. “Poderíamos enviar algo para a Estação Espacial Internacional nos próximos cinco anos, e depois trabalhar a partir de lá”, antecipou.

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O Pólo Sul da Lua, em imagens obtidas pela câmara da sonda Lunar Reconnaissance Orbiter Universidade do Arizona

É tudo uma questão de prioridades e de empenho. Já fizemos coisas que pareciam mais impossíveis. “Quando no início da década de 1960 o Presidente [John F. Kennedy] prometeu ‘Vamos por um homem na Lua até ao fim da década’, isso representou um salto muito maior na ciência e tecnologia da época do que aquilo que agora estamos a propor”, afirmou Mary Hagedorn. “Sabemos como fazer isto, e havemos de o fazer. Mas pode demorar décadas até o conseguirmos fazer.”