Ecocídio a par de genocídio e crimes de guerra? Ilhas do Pacífico levam proposta ao Tribunal Penal Internacional

Vanuatu, Fiji e Samoa apresentaram proposta ao TPI. Se for bem-sucedida, ecocídio poderá ser o quinto crime abrangido pelo tribunal de crimes internacionais.

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O arquipélago de Vanuatu, em pleno oceano Pacífico, é um dos Estados insulares mais ameaçados pelos efeitos das alterações climáticas Kris Paras / REUTERS
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Os Estados de Vanuatu, Fiji e Samoa, três ilhas do Pacífico fortemente ameaçadas pelas alterações climáticas, apresentaram na segunda-feira uma proposta ao Tribunal Penal Internacional (TPI) para reconhecer o “ecocídio” — a destruição ambiental em massa — como um crime ao abrigo do direito internacional, a par do genocídio e dos crimes de guerra.

A proposta define o “ecocídio” como “actos ilícitos ou negligentes cometidos com o conhecimento de que existe uma probabilidade substancial de que esses actos causem danos graves e generalizados ou de longo prazo ao ambiente”. Esta definição foi apresentada em 2021 pelo Painel de Peritos Independentes para a Definição Jurídica de Ecocídio, mandatado pela Fundação Stop Ecocide, de acordo com o comunicado da iniciativa.

Esta proposta de alteração do Estatuto de Roma para incluir o crime de ecocídio foi apresentada formalmente pelo arquipélago de Vanuatu ao Grupo de Trabalho sobre Alterações da Assembleia do TPI, tendo sido co-patrocinada por Fiji e Samoa.

O processo de análise e debate que poderá concretizar-se (ou não) no reconhecimento do ecocídio como um crime internacional poderá durar quase uma década.

Ímpeto internacional

O co-presidente do Painel de Peritos Independentes para a Definição Jurídica de Ecocídio, Philippe Sands, considera que “existe uma lacuna manifesta no Estatuto do TPI” e que, com esta proposta, “o ecocídio está agora firmemente inscrito na ordem de trabalhos, um momento vital e necessário para um direito internacional eficaz”.

Citado no comunicado da Stop Ecocide, o professor de Direito na University College London descreve que este momento “reflecte um reconhecimento crescente de que a destruição ambiental grave merece a mesma responsabilidade legal que outros crimes internacionais graves que se centram no ser humano”.

“Convido os Estados-membros a apoiarem esta iniciativa, a reconhecerem que o Estatuto de Roma, tal como está redigido, não consegue tratar adequadamente os danos ambientais e que este é um momento de mudança geracional, necessário para salvaguardar o nosso ambiente e sinalizar às gerações futuras que o mundo está verdadeiramente empenhado em fazê-lo”, apela Philippe Sands.

Abrangência limitada

Criado em 2002, o TPI é o único tribunal com competência para julgar os quatro mais graves crimes internacionais: crimes contra a Humanidade, genocídio, crimes de guerra e agressão. O mandato do TPI abrange apenas os 123 Estados-membros que ratificaram o Estatuto de Roma, o que exclui vários dos grandes emissores globais, como Estados Unidos, China, Índia e Rússia.

O ecocídio chegou a estar em cima da mesa aquando da criação do TPI, tendo como condição a ameaça à saúde ou sobrevivência de uma população, mas acabou por ser excluído durante a votação final dos crimes que integrariam a jurisdição do tribunal, no final da década de 1990.

De acordo com a actual proposta sobre ecocídio, indivíduos em altos cargos de decisão poderão ser responsabilizados criminalmente se as suas acções resultarem em danos ambientais graves, como derrames de petróleo ou de produtos químicos, o abate de florestas tropicais primárias ou acidentes nucleares transfronteiriços. Ou seja, se for bem-sucedida, a alteração poderá permitir a acusação – e punição – de directores de grandes empresas poluidoras ou chefes de Estado.

Ecocídio já é punido na Europa

O TPI não é o único palco onde se tem lutado para tornar o ecocídio um crime, com o apoio a este tipo de leis a tornar-se cada vez mais visível.

No início de 2024, a Bélgica reconheceu o ecocídio como crime, com leis similares já aprovadas no Chile e em França. De acordo com a iniciativa Stop Ecocide, propostas de legislação sobre ecocídio estão a avançar em países como Brasil, Escócia, Itália, México e Peru.

Em Portugal, nas legislativas deste ano, o PAN incluiu no seu programa eleitoral a proposta de consagração do crime de ecocídio.

Na revisão da Directiva europeia relativa aos crimes ambientais, concluída em Novembro do ano passado, a União Europeia passou a considerar “infracções qualificadas” as “condutas comparáveis ao ecocídio”, como incêndios florestais em grande escala ou a poluição generalizada do ar, da água e do solo, que conduz à destruição de um ecossistema.

Apoio popular

Na semana passada, uma sondagem mostrou que quase três em cada quatro pessoas (72%) inquiridas em 18 países do G20 — os mais ricos do mundo — são a favor de que seja considerado crime a aprovação ou autorização de acções que causem danos graves à natureza e ao clima por parte do governo ou dos líderes de grandes empresas.

A sondagem Global Commons Survey 2024 foi realizada pela Ipsos a pedido das entidades Earth4All e Global Commons Alliance.

No Parlamento Europeu, que tem sido palco de polémicas sobre questões climáticas, a revisão da directiva contra crimes ambientais foi adoptada com 499 votos a favor, 100 contra e 23 abstenções.

Questão existencial

O primeiro apelo ao reconhecimento internacional do ecocídio no Tribunal Penal Internacional foi feito há cinco anos, em 2019, por Vanuatu, um arquipélago de 80 ilhas na Oceânia. O facto de esta proposta ter sido agora apresentada com o apoio de Fiji e Samoa, outras nações insulares do Pacífico, demonstra o papel central destas questões para os Pequenos Estados Insulares em Desenvolvimento (SIDS), que se encontram em risco existencial.

“As perdas e danos ambientais e climáticos em Vanuatu estão a devastar a nossa economia insular, a submergir o nosso território e a ameaçar os meios de subsistência”, alerta o enviado especial para as alterações climáticas e o ambiente da República de Vanuatu, Ralph Regenvanu.

Esta “tragédia”, descreve, é “partilhada por muitas pequenas nações insulares que, apesar de serem as menos responsáveis pela crise, são as que mais sofrem com os seus impactos”.

“Vanuatu considera imperativo que a comunidade internacional leve esta conversa a sério”, reforça ainda o enviado especial, que pede aos outros Estados que “tomem nota” do apoio substancial da sociedade civil por todo o mundo a esta iniciativa. “O reconhecimento legal de danos ambientais graves e generalizados tem um potencial significativo para garantir a justiça e, crucialmente, para impedir mais destruição.”