Pôr ordem na casa

Lucília Gago é a dona da casa desarrumada a arrumar. A primeira responsável. Seis anos de boca cosida, ouvidos tapados, olhos vendados. Falou uma vez. Desarrumou mais a casa.

Ouça este artigo
00:00
03:59

A ministra da Justiça é a primeira responsável política da Administração da Justiça. Não lhe é admitido que fale ou actue como se lhe fosse estranho o que se passa na sua área de intervenção. Ante a lastimável situação que se vive no Ministério Público (MP), assumiu a pose dos que estão de fora.

Decretou, de forma displicente e piadética, que se impunha "pôr ordem na casa". Certo que não exerce qualquer tipo de poder hierárquico sobre o Ministério Público. Ainda bem, como se vê e alcança dessa infeliz intervenção irresponsável.

À ministra da Justiça, sendo-o, não se lhe concede que trate a brincar o que é sério. Se o brincar não for a sério.

Tratar e versar sobre o Ministério Público​ de animus jocandi demonstra leviandade e ligeireza na boca de um membro do Governo. Grave é que não disse mais nada. Nem sequer o que está desordenado na casa.

O manifesto dos 50 não descura oportunidades, nem sequer dissimula a ânsia de teorizar um MP/agente administrativo, às ordens do Governo. Investiga este. Aquele não. Acusa aqui. Ali não. Uma quase revolta contra a Constituição. Um MP moldado ao jeito da Constituição de 1933.

António Garcia Pereira, subscritor do manifesto, não se coíbe de traçar as linhas e estatuto de um MP funcionário. Sem qualquer autonomia interna ou externa. Obediência ao poder político e pronto.

Caminho mais para cima, e em consonância, Alberto Costa, ex-ministro da Justiça, teoriza o esforço inglório para escorraçar o MP do Supremo Tribunal de Justiça.

Conveniência e ressentimento tomaram o lugar da sensatez e sentido de Estado. A Constituição e princípios relativos ao MP, voluntariamente lateralizados.

Nesses tempos, ainda próximos no tempo, a comunicação social falou muito do e sobre o MP. Foi de férias. O tema Justiça/MP não vende em tempos de calor de Verão. Perdeu-se no vento que passa.

Lucília Gago é a dona da casa desarrumada a arrumar. A primeira responsável. Da Constituição da República recebeu o poder de dirigir e fiscalizar, ter a casa do MP em ordem. Seis anos de boca cosida, ouvidos tapados, olhos vendados. Falou uma vez. Desarrumou mais a casa.

De casa desarrumada, a procuradora que é hoje ouvida no Parlamento já tem a porta de saída escancarada. Para os políticos, reformar a Justiça penal (arrumar a casa) traduz-se sempre num esforço hercúleo. Dar uma ordem à Imprensa Nacional. Alterar artigos dos Código Penal e de Processo. Dezenas de vezes alterados ao sabor dos ventos da conjuntura.

Recusam pensar e admitir que os distúrbios e abusos não emanam dos códigos. Antes das cabeças desinformadas que os interpretam e aplicam.

Há, com clareza, uma certa ordem a pôr na Casa da Justiça. Não certamente a de fortalecer militarmente a hierarquia no MP. Nem penetrar subrepticiamente na independência dos juízes.

Se se olhar o mundo que, sistematicamente, nos oferecem, logo vemos que aquelas cabeças não se ajustam à Constituição da República. Não agem com respeito pela liberdade. Direitos e garantias. Minimizam a Constituição e os cidadãos. Exibem a força nas entradas e saídas dos tribunais. Exercem abusivamente o poder nas salas de audiência. Passeiam a mente em extensões deletérias nas sentenças e despachos. Banqueteiam-se no juridismo. No perquirir ad nauseam de acórdãos a propósito e despropósito. Lateralizam os grandes princípios constitucionais.

Com recurso sistemático ao formalismo e processualismo doentio, procuram pretextos para não decidir. Aí é que se impõe pôr ordem na casa, o que de há muito se requer. Se a Constituição está nas cabeças, logo passa para as decisões.

Sugerir correcção
Comentar